A cada notícia publicada sobre morte de crianças decorrentes de operações das polícias de vários estados, eu lembro da música “Menino”, do Milton Nascimento. Tem um trecho da letra que ajuda a dar significado ao que estamos assistindo cotidianamente. Eis o trecho: "quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte, talhada a ferro e fogo, nas profundezas do corte, que a bala riscou no peito, quem cala morre contigo”. Convivemos com situações assim com cada vez mais frequência.
Vivemos um tempo de muita violência. Tanto é que vários estudiosos afirmam que, em nosso país, edificamos a chamada “cultura da violência”. Podemos classificar a violência como uma forma de afrontamento aos direitos considerados invioláveis na sociedade - direitos civis, sociais, entre outros – direitos esses que são fruto de um processo histórico que acompanha a humanidade desde a Antiguidade, manifestando-se de diversas maneiras, dependendo dos hábitos e costumes de cada grupo social.
Mas assim como foi um processo histórico que nos legou tais direitos, a violência ora em curso não foi cravada em nossa realidade da noite para o dia. Ela também se deu através de um processo longo, encaminhado por discursos, ações e omissões de determinados segmentos sociais. Nesse sentido, a violência é uma construção cultural-histórica cada vez mais enraizada em uma sociedade desumanizada, desigual e doente.
De acordo com o Atlas da Violência 2025, a morte violenta é a principal causa de óbito de jovens entre 15 e 29 anos no Brasil. Em 2023, 34% das mortes de jovens no país foram consequência de homicídios. Do total de 45.747 homicídios registrados no Brasil em 2023, 47,8% vitimaram jovens entre 15 e 29 anos. 21.856 jovens tiveram suas vidas ceifadas prematuramente, o que corresponde a uma média de 60 jovens assassinados por dia no país. Considerando a série histórica dos últimos onze anos (2013-2023), foram 312.713 jovens vítimas da violência letal no Brasil. Aqui no Brasil, por exemplo, uma criança é morta de forma violenta a cada 2 horas.
Quantos sonhos não enterramos com essas crianças e jovens que morrem de forma tão bárbara. Quanta dor não fica latejando no corpo de seus familiares. E qual deverá ser o tamanho da nossa vergonha por permitirmos que isso aconteça.
Para que nós enquanto sociedade nos curemos dessa doença, precisaremos reverter o processo que nos trouxe até aqui. Leva tempo até estabelecermos uma outra cultura, a cultura da tolerância.
Voltando ao Milton Nascimento, da mesma forma que quem cala sobre teu corpo, consente na sua morte, “quem grita vive contigo” diz a música.
Afonso Pola (acelsopp@gmail.com) é sociólogo e professor.