Vira e mexe e a questão do aborto volta a ser tema de um debate acalorado. Acalorado, mas muito superficial. Existe uma parcela significativa da sociedade que aborda a questão apenas como uma questão relacionada à moral. 

Nós podemos discutir a descriminalização do aborto a partir de duas óticas. Aquela que usa valores, normalmente vinculados ao viés da religiosidade, ou usar como critério de análise a questão da saúde pública.

E para a nossa reflexão, é importante dar atenção a determinados números. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerda de 23.000 mulheres morrem todos os anos de abortos inseguros e outras dezenas de milhares sofrem com complicações de saúde posteriores ao procedimento. E mais de 90% desses abortos inseguros são realizados em países em desenvolvimento na África, Ásia e América Latina, justamente onde a legislação relacionada ao tema é precária.

É preciso deixar claro que, quem defende a descriminalização do aborto não defende a realização do mesmo de forma indiscriminada. Essa defesa diz respeito ao Estado garantir um procedimento seguro para que a pessoa possa interromper uma gravidez, em situações que a legislação já prevê.

No caso do Brasil, as situações nas quais o procedimento abortivo pode ser aplicado estão descritas no Código Penal. Não é crime o aborto praticado em duas circunstâncias: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, e quando a gravidez é resultante de estupro, desde que o consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal, seja manifestado. Vale frisar que, no Código, não há qualquer vedação com relação à idade gestacional.

E o próprio STF também já debateu o tema, ampliando as hipóteses em que o aborto não é criminalizado, considerando inconstitucional a criminalização do aborto de feto anencéfalo.

Em nosso país, cerca de 800 mil mulheres praticam abortos todos os anos. Desse total, aproximadamente 200 mil recorrem ao SUS para tratar as sequelas de procedimentos malfeitos. E isso tem impacto importante nos custos do sistema de saúde. Bem como desnuda a desigualdade social. Enquanto mulheres oriundas de famílias ricas e de classe média fazem seus procedimentos com toda a segurança de clínicas “clandestinas”, a mulheres pobres, que não são atendidas pelo SUS recorrem a parteiras e procedimentos nada seguros.  

Na verdade, o número de abortos praticados anualmente no Brasil, já é um indicativo da falácia dessa retórica moralista. Se a criminalização fosse o caminho, não teríamos um número tão elevado assim.

 

Afonso Pola (afonsopola@uol.com.br) é sociólogo e professor