Vieram as águas de março! Como a demonstrar a revolta da natureza; disposta a remover o mar de lamas que cobre o solo pátrio; propensa a se desculpar por sua ausência inadmissível em anos anteriores, caiu copiosa, farta, virulenta.
Entre sorrisos foi enchendo açudes e augurando dias melhores. Entre lágrimas, nas periferias humildes e mal cuidadas, foi se impondo ao homem e semeando desgraças. 
Barracos que se equilibram nas vertentes dos morros, à falta de lugar para morar, alguns foram soterrados. Ruas descalçadas em bairros onde tudo falta, transformaram-se em inacessíveis lamaçais. Casas simples, já sem as cadeiras nas calçadas, como cantava Chico, mas que alguns teimam em chamar de lar, num repente, se viram estupradas pelo líquido avermelhado e sujo que, brotando das nuvens, se contaminou com a costumeira sujeira e com os irremovíveis detritos que identificam os rincões mais pobres.
À algumas famílias, tristes, porém resignadas, restou contar os prejuízos, carpir a perda das lembranças que formavam suas parcas memórias, tudo levado pelas chuvas inclementes. À outras, missão mais difícil. Ante à presença da dor inapagável da morte, coube prantear as mais de vinte almas que foram levadas para os indecifráveis caminhos dos céus. Por certo blasfemaram no compreensível desespero daquele que antecipa a cadeira vazia na mesa posta - quando se têm comida -, a ausência do sorriso, de uma palavra de carinho, do agrado, da companhia, do rosto que não será mais visto. Saudades antecipadas.
Alheios a tudo isso - verdade que andaram por aqui ou por ali, por dever de ofício - as autoridades políticas, tornaram a falhar. De há muito se cobra atitudes e planejamento. Trata-se, no entanto, de parcela sem voz, que não interfere nas eleições! Apresentem-se as costumeiras desculpas - "eram tempestades inesperadas"- e logo esquecerão. Imbecis, irresponsáveis, criminosos! Merecem cadeia!
Até à próxima catástrofe!