Em determinada perspectiva teórica, a sociedade capitalista se divide em duas classes. Capitalistas, os detentores dos meios de produção (instrumentos de produção e matéria prima) e o proletariado (que vende sua força de trabalho para garantir sua subsistência). Podemos identificar esses dois segmentos como o andar de cima e o andar de baixo da referida sociedade.
Nesta sociedade os fatos sociais chegam até nós via duas narrativas. A imediata, disseminada pelos meios de comunicação e, mais recentemente e intensamente, via redes sociais. Eles chegam como informação ou, no caso das redes sociais, muitas vezes como desinformação. Na imensa maioria das vezes são abordagens com conclusões precipitadas, superficiais e carregadas de um viés ideológico, não permitindo melhor entendimento dos acontecimentos. Como os meios de comunicação são os maiores condutores dessas informações e, geralmente são empresas privadas, podemos concluir que essa é a narrativa do andar de cima.
A outra narrativa é mais lenta. Chega até nós depois, a partir de estudos e reflexões de inúmeros especialistas e acadêmicos. Não mais envolvido pela emoção de um fato que está em curso e já avistando seus desdobramentos, o estudioso analisa cada fato social de uma posição bastante privilegiada. Portanto, ele possui melhor condição para compreender aquilo que, no momento em que está em curso, não é muito compreensível. Obviamente, nesse caso também a conclusão, seja ela qual for, carrega um viés ideológico, mas geralmente já considera a narrativa do andar de baixo.
O Chile viveu uma ditadura militar sangrenta entre os anos de 1973 e 1990. O país transformou-se num grande laboratório do pensamento neoliberal, sendo palco de reformas econômicas conduzidas por economistas formados em universidades estadunidenses, conhecidos como “Chicago Boys”. Na narrativa do “andar de cima” o país foi apresentado como a “terra prometida” do neoliberalismo.
Paulo Guedes, ministro da economia do governo Bolsonaro, ao defender a mudança da previdência para o regime de capitalização igual ao adotado por aquele país, chamou o Chile “Suíça da América Latina”.
Pouco tempo depois, o “andar de baixo” chileno resolveu mostrar para o mundo que uma mentira, por mais que seja repetida insistentemente, um dia se revela. A explosão social no Chile refletiu o mal-estar escondido pela narrativa neoliberal.
Fazia tempo que vários analistas chamavam a atenção para os problemas sociais existentes lá e que seguiam encobertos por indicadores do mercado.
Mercado não é a sociedade. E lá a sociedade acordou.
Afonso Pola (afonsopola@uol.com.br) é sociólogo e professor