O projeto Geloteca Ferraz é o destaque do novo episódio do Café com Mogi News, nesta terça-feira (21). O entrevistado é um dos idealizadores da iniciativa, Marcos Vinicius de Jesus, que conta como a iniciativa vem cumprido sua missão de incentivo à leitura, a partir de geladeiras antigas que ganham vida nova e são transformadas em estantes de livros, espalhadas pelas comunidades. Confira a entrevista realizada com apoio da Padaria Tita e conheça mais sobre as gelotecas. 

Café com Mogi News: Eu gostaria que você começasse explicando o que é o projeto Geloteca, e como como surgiu a ideia?
Marcos Vinicius de Jesus:
Em 2017 um haitiano veio tentar a vida aqui no Brasil, não teve êxito e precisou voltar para Porto Príncipe. Ele não conseguia levar a geladeira e deixou aqui. O artista plástico Todyone, que é o João Belmonte, fez o desenho, grafitou, colocamos livros e deixamos na Rua da Biquinha, uma rua no bairro de Guaianases (Zona Leste da capital). A partir dali nasceu o projeto Geloteca e já estamos indo para 8 anos.


CMN:  O Projeto Geloteca em Ferraz é uma extensão do Projeto Geloteca SP, não é isso?
Marcos Vinicius:
Isso,  o projeto Geloteca Ferraz é uma extensão. A gente iniciou em 2021 e esse ano fez dois anos que estamos atuando na cidade, que já contém aproximadamente 38 Gelotecas. Elas estão abrigadas em equipamentos públicos da cidade, UBS (Unidades Básicas de Saúde), estações da CPTM, em praças e escolas.

CMN: Como surgiu essa vontade de querer incentivar as crianças, os jovens, adolescentes à leitura? Você sempre gostou de ler?
Marcos Vinicius:
Sim, eu nasci em um lar que tinha uma dificuldade muito grande. Eu sou o quinto de oito irmãos, então é uma família bem grande e meus pais sempre trabalharam, mas infelizmente eles não tinham condições de de manter a gente, dar uma escola particular. A gente sempre gostou de ler gibi, revista... Eu sempre gostei dessa parte social e a gente sempre percebeu a ausência de referência na nossa comunidade, na nossa quebrada.

CMN: Você é de qual cidade?
Marcos Vinicius:
Eu sou de Ferraz de Vasconcelos, morador da rua da Lama. A gente chegou em 1995, onde literalmente era tudo lama, tudo barro, hoje está asfaltado mas o nome continua, o legado. A gente cresceu, viveu naquelas condições bem pobres, mas sempre procurando estudar. Hoje eu tenho duas irmãs advogadas, uma engenheira e isso através da educação.

CMN: E como foi sua história com o João do Belmonte, o famoso Tody, vocês se conheciam já e os dois tiveram a ideia de montar a Geloteca?
Marcos Vinicius:
Eu conheci o João abastecendo a Geloteca. Eu estava estudando Direito na ocasião e ele estava abastecendo com um acervo de Direito, conversamos e a gente fez um espaço de ideias, e hoje estamos tocando vários lugares.

CMN: Como é feita essa seleção dos lugares para instalar Geloteca, vocês procuram sempre instalar em comunidades?
Marcos Vinicius:
Sim, como eu havia dito é um projeto democrático, mas a maioria das Gelotecas colocamos em lugar de maior vulnerabilidade social. No começo, a gente teve muita perca, colocava em praça, mas infelizmente acontecia de as pessoas subtrairem as Gelotecas. Aí a gente optou por equipamentos públicos ou então pelo projeto chamado "Adote uma Geloteca", em que alguém responsável que tivesse uma barbearia, uma tabacaria ou algum comércio dentro do bairro, ficava responsável pelo cuidado e pela manutenção das Gelotecas. A gente deve ter umas 12 na cidade, e elas são cuidadas, limpas e abastecidas sempre.

CMN: Quais cidades têm Gelotecashoje?
Marcos Vinicius:
 Nós estamos em nove estados do Brasil, temos no Rio Grande do Sul,  Belo Horizonte, São Paulo, Belém do Pará. A do Belém do Pará é legal porque fica numa comunidade de ribeirinhos. A gente tem em Pernambuco, onde é a Alana que toca, além do Rio Grande do Norte e Santa Catarina. Em São Paulo, nós temos em Osasco, que é outro artista que cuida, o Dingos Del Barco. Ele também é muito bravo no movimento, na cena do grafite e do hip hop, Temos em Ribeirão Pires, Ferraz, São Paulo, Suzano, São José dos Campos, Jacareí e eu acho que em Barueri.

CMN: Como é que funciona esse esquema da geladeira, vocês ganham? Como surge tanta geladeira?
Marcos Vinicius:
Comprava e já tinha uma parceria com ferro velho, porque como para a gente não interessa o motor e nem aquelas partes de cobre só a casca. Hoje a gente se organizou, temos coordenadora dentro do projeto que é a Monique Castilho, ela é responsável pela parte artística e pela captação também das doações. Ela montou um formulário onde as pessoas entram em contato e oferecem geladeira, tinta, livros e a gente busca. Temos um outro parceiro, o Edjah, que tem um caminhãozinho, ele sempre busca. Inclusive, nós estamos com umas 10 Gelotecas que a gente quer pintar simultaneamente para por na cidade de Poá, que vai aderir também ao projeto e já tem uma pessoa responsável para tocar.

CMN: Como funciona a questão da arte na geladeira? Se vocês que estão nos assistindo e quiser pesquisar, a geladeira é uma geladeira toda grafitada . São vocês mesmo que fazem a arte?
Marcos Vinicius:
Sim, são geladeiras personalizadas, cada uma tem a sua arte e cada uma tem um artista. A gente tem no nosso Instagram um formulário de artista. Se você é artista e tem vontade de deixar sua marca, entra lá e se inscreve. A Monique faz a triagem e a pessoa, à medida que a gente vai pintando a geladeira, vamos convidando, a última artista foi a Nani Dias, é brava também. Ela veio do Itaim Paulista fez uma geloteca numa UBS que acabou de ser inaugurada e também veio a Nivi de Itapevi, que grafitou, e é assim, porque assim é uma forma de divulgar o trabalho deles. Hoje a gente tem 17 estações da CPTM com as Gelotecas, então sempre as pessoas passam e vêem, é a forma deles ajudarem e contribuírem também.

CMN: Como funciona os livros que ficam dentro da geladeira, vocês ganham esses livros?
Marcos Vinicius: 
A ideia é fazer com que que as pessoas doem. Se você quer um, você pega, e se você tem, você doa. A gente também tem algumas parcerias com universidades que fazem a doação e a gente vai mantendo, tem um espaço na minha casa que a gente faz a triagem, porque a depender do local que a Geloteca está abrigada existe um público específico. No Paço da Prefeitura de Ferraz, a gente opta por revistas, livros. 

Na UBS, a gente opta mais por uma literatura infantil, e no Hospital Regional de Ferraz, a gente tem duas Gelotecas, uma delas no Pronto-Socorro.  A gente coloca de tudo, as pessoas vão lá aguardar para serem atendidas e pegam uma leitura. A gente tem uma na parte da Maternidade, também com mais infantil e revistas. 

A gente sempre tem esse cuidado de fazer triagem. Nas estações, a gente não vence porque é muito usuário, então colocamos de tudo e a gente evita ao máximo por livros didático. Uma vez eu até ia parar de por, mas teve um senhorzinho que parou a gente e falou: 'Não, não tira não que eu relembrei fazer continha a partir desse livro.'  Aí a gente deixa lá, mas não são todas, então cada Geloteca é um público diferente.

CMN: Vocês não têm um público alvo?
Marcos Vinicius:
Não, inclusive tem uma história super bacana. Tem uma Geloteca em um bairro chamado Cidade Kemel. A gente ganhou uma doação de livros da Universidade Nove de Julho, do campus de Vila Prudente, que é uma grande parceira nossa e eram livros de Direito que eles doaram. A gente colocou na Cidade Kemel, que fica em Ferraz, porque faz divisa com quatro cidades. A gente colocou lá e essa moça, ela é estudante de Direito e bolsista do ProUni, os pais têm uma vida bem difícil e ela estava se preparando para prestar o exame da Ordem (dos Advogados do Brasil - OAB) e ela conseguiu achar os livros que a gente colocou. Graças ao esforço dela, ela passou na primeira e na segunda fase através dos livros que a gente disponibilizou na geladeira. Ela entrou em contato e nos chamou para participar da solenidade que a OAB faz pra entrega das carteiras, isso foi bem marcante e legal.

CMN: Você estava falando aqui nos bastidores de um prêmio que vocês ganharam de um programa, gostaria que você contassem mais.
Marcos Vinicius:
Sim, em 2021, o João e o Adam, que é o representante do Projeto Geloteca BH (Belo Horizonte) participaram do "The Wall", do Luciano Huck, e a gente conseguiu ganhar R$ 172 mil para montar uma sede, um espaço físico porque o projeto que até então não tinha esse espaço físico. A gente era itinerante, só colocava a geloteca. Conseguimos ficar em Guaianases e o espaço é bem bacana.

CMN: Como funciona a questão dos livros, voltando nesse assunto, as pessoas pegam e levam os livros ou devolvem depois de um dia. tem alguma regra.?
Marcos Vinicius:
A gente não consegue ter esse controle, utilizamos mais da consciência social de cada um. É um trabalhinho de formiguinha, que você tenta desconstruir pessoas que têm essa consciência de ler e devolver para outra pessoa. Têm pessoas que não, que pegam só para acumular e tem vezes que eles nem leem, infelizmente. Então a gente não tem esse controle, porque a gente prefere deixar o responsável pela Geloteca. Nas UBSs, as gerentes que atendem as Gelotecas ficam responsáveis por elas e coloca um aviso: 'um livro por pessoa, acabando de ler, devolva'. Tem gente que devolve e tem gente que não, mas infelizmente é um trabalhinho de formiguinha. Eu costumo dizer que a gente é andarilho da utopia, você não sabe se vai dar certo, mas está indo.

CMN: Qual foi o maior desafio que é o projeto da Geloteca enfrentou?
Marcos Vinicius:
Em Ferraz, foi para a gente ingressar na cidade porque era algo inovador. Hoje é a população já conhece, já tem experiência, mas no começo a gente enfrentou uma certa resistência. Teve um bairro que a gente colocou, as pessoas abriram e urinaram dentro da geladeira com os livros. A gente foi lá lavou e continuou com ela e hoje ela está lá firme e forte, resistindo. Eu acho que esses são os nossos grandes desafios porque às vezes tem lugar que já colocamos a Geloteca três vezes. A gente colocava de manhã, a pessoa ia roubava, e no outro dia, a gente ganhava outra geladeira, inclusive tem um caso que está na página, na frente da onde a gente colocou tinha uma câmera e filma o rapaz puxando com a mão e com a outra mão levando os livros num saco, mas a gente insiste. 

Às vezes a pessoa pergunta: 'mas porquê vocês fazem isso, vocês sabem que vão levar?".  A gente ainda acredita que é melhor oportunizar, porque se alcançar uma pessoa já está de bom tamanho. A gente não sabe quantas pessoas alcançamos. Quando a pessoa tem um trabalho social de alimento, ele sabe quantas pessoas ele alcança a partir da quantidade, a gente não sabe só coloca e aposta.

CMN: Vocês têm o objetivo de expandir para outras cidades do Alto Tietê?
Marcos Vinicius:
Sim, a gente tem em Itaquá, com parceria com a Secretaria de Educação de Itaquá; Poá a gente está quase finalizando, e tem em Mogi. A de Mogi foi um rapaz que fez, só que ele usou outra nomenclatura. Acho que foi 'cuca fresca', e a gente não se incomoda, só que eu acho que eles deram uma interrompida, depois se ele quiser entrar em contato, porque a nossa ideia é expandir, independente quem faz ou como faz, a ideia é aumentar.

CMN: Como as pessoas podem ajudar, se eles podem procurar vocês através da página, se levando livro já ajuda, como podem contribuir para o projeto Geloteca?
Marcos Vinicius:
Sim, como eu havia dito a gente tem 17 estações da CPTM. Em quase todas as linhas, a gente tem uma Geloteca, quando não é uma Geloteca, é uma estante de livros, e se a pessoa quiser doar, assim de forma anônima, é só ela ir, abrir uma geloteca e por. Se ela quiser doar a geladeira, a gente tem um formulário na nossa página do Instagram @projetogelotecaferraz e lá tem direcionamento do WhatsApp da Monique e do pessoal responsável que faz essa parte da logística.

CMN: Quantas pessoas fazem parte do projeto?
Marcos Vinicius:
É uma equipe bem grande. Eu sou o responsável, tem a Monique, o Gabriel, Bianca, Regina, Edjan é bastante gente como voluntário e que fazem acontecer. É uma retaguarda bem forte que temos para tocar o projeto.