O Café com Mogi News desta terça-feira (8) destaca um grande desafio para a nossa sociedade que é o combate à violência contra a mulher. No novo episódio, a entrevistada é Dra. Rosana Pierucetti, advogada e presidente da Organização da Sociedade Civil (OSC) Recomeçar, com sede em Mogi das Cruzes. A entidade acolhe de forma sigilosa mulheres vítimas de violência e seus filhos, e recentemente, expandiu o trabalho para a Jacareí. 

 

Neste Agosto Lilás, mês que destaca a importância do combate à violência contra a mulher, ela conta a trajetória da OSC e seu trabalho por essas mulheres. Um trabalho que começou em 2004, antes mesmo da criação da Lei Maria da Penha, que completou 17 anos neste mês. Saiba mais nesta entrevista especial, produzida com apoio da Padaria Tita. 

 

Café com Mogi News: Como o Direito surgiu na sua vida?

 

Dra. Rosana Pierucetti: Sobre o Direito, desde pequena eu nunca pensei em outra coisa. A razão eu não sei, mas nunca pensei em outra carreira que não fosse advogado. Inclusive, o meu pai, uma pessoa das antigas, não queria que eu fosse advogada, porque ele achava que advogada tinha que ir na delegacia, ficar no meio dos homens. Quando chegou o momento de ir para a faculdade foi o Direito que eu escolhi, e amo a minha profissão. Tenho muito orgulho disso, e sempre digo: 'é aqui que eu deveria estar, e é aqui que eu estou'.

 

CMN: Como surgiu esse trabalho com as mulheres?

 

Dra. Rosana: Eu sempre tive essa sensibilidade com a questão das mulheres. Quando eu comecei a advogar, a gente começa a fazer assistência judiciária. Nessa assistência, 80% das pessoas que vão procurar este serviço são mulheres. Trabalhando com isso, em Mogi, em Guararema, a gente percebia que elas traziam várias questões que  precisavam resolver. Questão de divórcio, guarda de filhos, regularização de imóvel... Na conversa que você começava a ter com essa mulher, para montar até a sua petição,  elas acabavam relatando que estavam querendo regularizar tudo isso por conta da violência.

 

Então, a violência sempre ficava em segundo plano, quando na verdade ela deveria estar cuidando disso. Foram muitos anos atendendo sem ter uma lei específica, porque na época não tinha a Lei Maria da Penha e a gente realmente ficava bem abalado com alguns relatos e o grande sofrimento de algumas famílias.

 

Com o tempo, dentro da Comissão da Mulher Advogada, onde eu também sempre fui muito atuante, junto com outras advogadas, a gente percebeu esse grande problema da sociedade e que tínhamos que fazer alguma coisa. Eu acho que as OSCs surgem nesse momento, quando você fala: 'não, eu preciso fazer alguma coisa'.

 

A dra. Joana, que foi uma grande lutadora, e hoje não está mais conosco. Ela na época era presidente da Comissão da Mulher Advogada, e nos impulsionou a fundar uma ONG que atendesse essas mulheres, que orientasse nesses momentos em que a mulher está tão vulnerável e não sabe onde vai, com quem que ela vai falar, se ela deve ou não falar. A ONG surgiu nesse momento, foi fundada em 2004.

 

CMN: Nesse primeiro momento não tinha esse abrigo, como começou esse trabalho?

Dra. Rosana: Quando surgiu a ONG e qualquer serviço que tende a ajudar a auxiliar pessoas, a partir do momento que surge o serviço surge as demandas que são necessárias para isso.  Foi nesse momento quando foi fundada a ONG, que a gente começou a fazer reuniões para discutir quais eram as necessidades das mulheres, além da questão jurídica. Nós percebemos que Mogi das Cruzes não tinha o Conselho da Mulher.

 

Mogi das Cruzes não tinha um acolhimento para mulheres, não tinha um Centro de Referência. A única discussão que tinha da questão da mulher era dentro da Comissão da Mulher Advogada na Ordem dos Advogados. Então, a gente pensou: 'vamos por esse caminho'. Não tem o Conselho? Vamos tentar implantar aqui o Conselho da Mulher.

 

Sentamos, pesquisamos como funcionava em outros municípios, e aí vai a questão política, porque a gente tem que ter lá na política alguém que seja sensível à causa. Naquele momento, isso eu faço questão de falar todas as vezes, a gente encontrou um prefeito que era sensível e fomos conversar com ele. Na época era o Junji Abe. Ele falou: 'vocês que mexem com lei, vejam o que precisa e a gente vai implantar', e foi implantado o Conselho da Mulher.

 

Não me lembro se foi a Joana que foi presidente primeiro ou se fui eu. Eu acabei ficando muitos anos como presidente da ONG, porque ainda era um Conselho novo, então muitas mulheres não queriam assumir esse compromisso e eu acabei ficando por algum tempo no Conselho da Mulher.

 

Dentro do Conselho da Mulher, discutindo também as questões, as necessidades das mulheres aqui do município, a gente percebeu essa questão da mulher em situação de violência. Você atendia a mulher, fazia todos os requerimentos, afastamento de lar que também ainda não tinha lei, guarda de filhos, só que ela ainda continuava vulnerável e correndo risco de vida ou de sofrer uma violência até mais grave por ela ter tomado providências, ter denunciado.

 

Foi nesse momento que a gente, mais uma vez, pressionou o poder público através das advogadas para que a gente tivesse aqui no município um acolhimento sigiloso, que é esse específico para a mulher que está sofrendo violência e corre risco.

 

CMN: O acolhimento foi criado em 2012?

Dra. Rosana: O acolhimento surgiu primeiro, foi uma luta do Conselho da Mulher, da ONG Recomeçar, das mulheres advogadas. Só que nós ainda não fazíamos esse serviço. A gente não tinha essa expertise de trabalhar com acolhimento. A princípio foi a Abomoras, uma instituição aqui de Mogi que trabalha com pessoas em situação de rua, que assumiu. Nós estávamos o tempo todo ali juntas. Levando com nosso carro, acolhendo a mulher, levando onde precisava. A gente ficou junto com a Abomoras, embora os técnicos e os funcionários fossem deles.

 

Só que em 2012 a instituição começou a enfrentar alguns problemas, porque a questão da mulher, quando tem homens que fazem o atendimento e o presidente da Abomoras era homem e tinha técnicos homens, a mulher que estava vulnerável precisa da presença de uma mulher para ouvi-la. Ela precisa disso, ela está muito sensível.

 

Nesse momento, a Prefeitura nos convocou, já que a gente trabalhava e tinha toda essa experiência, para assumir esse serviço. A gente assumiu com muito medo. Eu falo que tudo surge na necessidade, mesmo porque a gente não tinha essa experiência. Se as mulheres precisam, a gente vai com medo mesmo. 

 

CMN: Quantas mulheres já passaram por esse acolhimento?

Dra. Rosana: Eu fui procurar os dados quando eu conversei com a Jamile (Santana, jornalista) para a gente compilar esses dados da instituição, que é importante até para você reivindicar políticas públicas mais efetivas. Ontem eu puxei os últimos dados, e nós já atendemos 404 pessoas, entre mulheres, crianças e adolescentes no acolhimento sigiloso.

 

A gente está falando isso de 2012, mas a ONG foi fundada em 2004. Então, tem um período que infelizmente não está nesses dados, mas 404 já é um número alto considerando que a família que vai para lá está correndo sério risco de vida. Esses números que a gente tem, para mim são assustadores. Se fosse uma mulher por ano correndo risco de vida, para mim, já seria muito, porque é uma vida.

 

CMN: Como você vê os números recentes, com a pandemia também o agravamento dessa violência contra mulher? Os casos de feminicídio, que infelizmente parece que vêm aumentando.

Dra. Rosana: O que me entristece, me decepciona muito, é essa questão de as coisas surgirem, a política surgir por uma necessidade e às vezes por perda de vida. Foi o caso do nosso acolhimento em 2012. Em 2015, a gente teve aqui em Mogi das Cruzes um recorde de feminicídio, que inclusive foram amplamente denunciados. A partir daí que a gente discute indeferimento de medida protetiva, no caso de 2015 foi isso em Mogi. A gente tinha muito indeferimento de medidas protetivas, na verdade especificamente por uma das varas aqui de Mogi das Cruzes, e hoje já não tem mais isso.

 

É tudo uma luta, a gente fez na época um fórum, chamamos Defensoria Pública, Ministério Público de São Paulo, para discutir por que o juiz indefere à medida protetiva se existe uma lei. Por que o Ministério Público não recorre de um indeferimento desse? A mulher está no acolhimento, não tem a medida protetiva, como é que ela vai sair? Aí tem outros problemas que a mulher tem por estar no acolhimento sigiloso, isolada da sociedade, da sua família. Aí eu falo da violência institucional, porque institucionalmente ela também está sendo agredida, porque ela quer sair, ela quer ter contato com a família, as crianças têm o direito de interagir, ir para a escola, brincar. Por melhor que a gente faça, ainda é um isolamento social.

 

CMN: Como funciona esse acolhimento?

Dra. Rosana: A gente tem uma equipe técnica, que são as funcionárias da instituição. Nós temos assistente social, psicóloga, coordenadora, educadoras sociais que ficam 24 horas e revezam. Temos o administrativo, que é na sede, porque nós temos que ter dois endereços: o acolhimento, que é sigiloso, e a sede onde a gente recebe a Imprensa, o oficial de Justiça que vai levar as intimações, as pessoas que querem fazer doações, a família que às vezes quer saber como que a mulher está, as técnicas atendem na sede.

 

As mulheres acessam o serviço através dos Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), dos Cras (Centro de Referência de Assistência Social), da educação. Às vezes a educação está com a criança e percebe que tem a violência, ou a própria criança ou adolescente relata essa violência grave, aí é encaminhado também para a gente. Tem a Delegacia da Mulher (DDM) que é a principal porta de entrada para as mulheres em situação de violência.

 

Embora a gente tenha que avançar muito nessa questão do acolhimento da DDM. A gente tem muitas situações que não condizem com o serviço, que foi uma luta das mulheres, uma delegacia especializada que foi criada para atender as mulheres de uma forma diferenciada. Do horário de atendimento, dos dias de atendimento, final de semana que não funciona e a capacitação de quem está para atender, que deveria ser um atendimento mais humanizado, e a gente sabe que isso não acontece. 

 

Falar que isso não acontece, não é porque você está querendo criticar, não, a gente quer melhorar. Se foi uma árdua luta das mulheres, porque tudo para nós é muito difícil. Todos os resultados que a gente consegue são muitos anos de luta, porque os avanços são lentos nesse campo do direito da mulher.

 

Falar o que não está acontecendo da forma adequada é para que isso melhore. Então, as DDMs realmente precisam de uma capacitação desses funcionários, para eles entenderem porquê estão lá, e que não sejam designadas pessoas que não querem trabalhar com isso, porque quando você não quer, você atende muito mal.

 

CMN: Hoje a gente tem uma Patrulha Maria da Penha também, já é um serviço diferenciado.

Dra. Rosana: Que foi uma grande luta também dos movimentos de mulheres daqui, e eu rendo as minhas homenagens aos movimentos de mulheres de Mogi das Cruzes, que de alguns anos para cá têm lutado muito para melhorar as condições das mulheres da cidade.


A Patrulha Maria da Penha surgiu nessa luta, também com políticos com sensibilidade para isso. Lá atrás era o Junji que estava. Quando foi para criar a Maria da Penha um dos grandes parceiros foi o Juliano Abe. Eu me lembro que ia conversar com o Juliano e uma vez ele falou: ‘doutora, mas eu não trabalho só para as mulheres. Eu enquanto vereador trabalho por uma população e são vários segmentos’. A gente sabe disso, mas aí eu continuei visitando Juliano, falando sobre as necessidades das mulheres, do grande risco que elas corriam, e que a gente precisava ampliar essa rede de segurança para as mulheres em situação de violência.


Ele acabou indo atrás de outros políticos para trazer o financiamento. Essas políticas precisam de financiamento. Foi com a Keiko Ota, ela veio para Mogi conhecer o nosso trabalho. Nós tivemos uma longa conversa, através do Juliano, e aí foi implantado em Mogi das Cruzes a Patrulha da Maria da Penha que, diga-se de passagem, é um trabalho que funciona muito bem.


Eu falo isso para você, porque a gente tem esse retorno das mulheres que são acompanhadas. Quando o juiz defere a medida protetiva, ela precisa do acompanhamento. Ele já pergunta se ela precisa e próprio Fórum já oficia o comandante, e o comando já passa para a Patrulha que vai fazer esse acompanhamento.


No acolhimento de mulheres, isso para nós é automático. A mulher que está no acolhimento sigiloso já precisa desse acompanhamento. A gente já faz esse ofício para a Patrulha Maria da Penha para ela ser acompanhada pelo menos por um tempo. Muitas vezes ela mesma fala: ‘’olha, eu já não preciso mais’. Esse é o importante. Eu falo que a nossa missão está cumprida quando uma mulher fala: ‘olha, eu já não preciso mais da Patrulha. Eu já estou trabalhando, cuidando dos meus filhos, eu já retomei a minha vida’.


Enfim, então, é o que eu falo para vocês, tem que continuar essa luta, temos que ter políticos sensíveis a isso, reconhecendo, inclusive, que somos mais de 50% da população.

 

CMN: Bem longe de uma minoria.

Dra. Rosana: Muito longe. A gente não fala mais em minorias, a gente fala  em grupos identitários, e nós somos um desses grupos que necessitam de políticas públicas para realmente ter uma vida digna e sem violência.

 

CMN: Essa equipe que você citou, assistente sociais, psicólogos, são todos voluntários?

Dra. Rosana: Não, são todos funcionários. O nosso trabalho pode contar com voluntários em outras ações, quando a gente vai participar de uma feira ou uma festa, onde vamos vender alimentação. Porém, o voluntário dentro do acolhimento sigiloso, a gente até já tentou fazer isso, mas torna-se um problema, porque a gente não pode ter essa troca de pessoas dentro do acolhimento que acaba com o sigilo. Isso para nós é um risco muito grande, então a gente acabou não fazendo mais.


Temos parceiras conosco, inclusive, a gente tem uma parceria no Socorro, com uma cabeleireira, a Giovana, que sempre se dispõe. A gente liga para ela e fala: ‘Giovana, estou com uma mulher aqui, e a gente vai precisar fazer esse dia da beleza, porque vai melhorar muito a questão psicológica dela’, e funciona super bem.


Fazemos o dia da beleza e chegando no acolhimento a gente faz uma sessão de fotos com elas, com a criança. Quando elas se olham nas fotos, a gente nota uma melhora na autoestima, a alegria de estar se vendo bonita, que tem que se arrumar e tocar a vida para a frente.


Não tem mais essa parceria de ir até o acolhimento, procuramos fazer parcerias que a gente leva com toda segurança para fazer isso. A gente tem o bazar, na sede, que podemos contar com voluntários, mas no acolhimento não funciona.

 

CMN: Tem um período para ficar no acolhimento ou não? 

Dra. Rosana: Sim, de acordo com as normas técnicas, a mulher pode ficar no acolhimento 180 dias. Mas é difícil, raras mulheres chegaram a ficar esse período, porque até como falei, é um isolamento social.


Então elas ficam até sair a medida protetiva. Algumas medidas são mais rápidas, outras demoram mais, e outras saem a medida protetiva e ela é deferida, porém, o risco é tão grande que a mulher ainda não tem segurança para sair do acolhimento e tocar a vida. Algumas saem do município, outras saem do Estado para garantir a vida, porque, a gente ainda não tem uma rede segurança que realmente garanta isso. Sabemos que na maioria dos casos elas saem por segurança, mas alguns casos são bem graves, então nós nos preocupamos até o fim, para que ela realmente saia em segurança.


É importante estarmos falando desse serviço para a mulher saber o quanto a gente trabalha em prol dela. A partir do momento que ela é acolhida, todas as decisões, tudo é feito com ela. É conversado no tempo dela, de acordo com que ela entende, porque a vida é dela. A gente decide os processos, mas hoje eu falo que as técnicas às vezes têm mais experiência na questão do direito do que eu, porque elas acessam o processo junto com a mulher e acompanham esse processo diariamente. 


Então ela vai acompanhar todo o processo, porque ela tem que estar preparada para quando sair do acolhimento, quando for desabrigada, poder acompanhar, eu acho que isso é o importante. A pandemia que foi uma tragédia mundial trouxe também experiências para nós, como a gente entender a exclusão digital de muitas mulheres. A gente senta com ela na frente de um notebook, explica como é que faz, que ela vai poder entrar pelo celular. Inclusive as mulheres que não tem celular, a gente procura fazer campanha de doação porque o celular, hoje, para a mulher que passa pela situação de violência, é importantíssimo para fazer a denúncia, para entrar em contato conosco, para ligar para o 180 que é o Disque Denúncia e pra ligar pra Polícia Militar, para Guarda Municipal.


Quando ela sai a gente passa todos esses contatos para ela e explica em qual momento vai ligar para a Polícia Militar, que é aquele momento que aquela violência está acontecendo. Quando ela liga para Guarda Municipal que está acompanhando, a Patrulha Maria da Penha que está acompanhando a medida.


E quando a gente fala de empoderamento, não é que a gente está falando que quer ser melhor que os homens, não é isso. A gente fala empoderamento em conhecimento, porque o conhecimento empodera. Eu acho que qualquer pessoa empoderada conhece os seus direitos. E eu tenho muito orgulho de dizer que uma mulher vai para o acolhimento de uma forma, mas ela sai completamente diferente. Até depois quando a gente encontra com essa mulher em alguns eventos, em algumas palestras que a gente faz nos bairros, a gente vê que ela tá diferente e isso é importante para nós. 

 

CMN: Você comentou da questão da beleza, a violência também, ela não é só física, ela é psicológica, colocar essa mulher para baixo. Tem outras formas também de agressão contra essa mulher?

Dra. Rosana: A gente vê que a violência psicológica hoje é a que mais faz mal para mulher, que realmente afeta intimamente. A mulher, quando tem o seu psicológico afetado, não consegue desempenhar várias coisas na sua vida, é o trabalho, é o cuidado com os filhos, é o cuidado com a sua própria saúde que acaba deixando para lá. Não quer sair, não quer conversar com ninguém, e aí vem a depressão e várias doenças que decorrem dessa violência psicológica. A gente não está falando de um ano, e um ano já é grave uma pessoa te atacando psicologicamente e dizendo que você não é capaz, que você não é bonita, que você não vai conseguir nada na vida, que você não é capaz nem de educar seus filhos, uma série de coisas que é a crueldade é enorme. 


Nós atendemos mulheres que já estão há mais de 10 anos, muito mais, até 30 anos. Olha o que acontece com esse ser humano, e hoje a gente entende que a violência psicológica ela é muito grave, porque fica muito difícil você resgatar essa pessoa depois de ter passado, por isso durante tanto tempo. Muitas vezes já tem filhos até adultos que também foram afetados por essa violência. 


Então tem a violência física, é aquela violência em que ela é atacada com um soco, com tapa. Não é sempre assim, mas a violência física faz com que ela procure mais rapidamente a ajuda, isso, quando não está impedida pelo próprio agressor. A gente fala em cárcere privado, não deixa conversar com ninguém.  


Tem a patrimonial, que é grave também. A mulher trabalha e não consegue gerir a sua própria renda porque o agressor toma conta. A violência moral, que é grave também. Na verdade quando a gente fala de violência contra mulher, todas são graves, mas a psicológica afeta muito mais a vida, porque ela não consegue organizar sua vida sozinha, ela vai precisar de muita ajuda.

 

CMN: E falando mais do trabalho da ONG, você comentou do bazar, quais as outras ações vocês costumam realizar?  

Dra. Rosana: Isso, a gente participa de eventos mas com a pandemia isso diminuiu muito. Nós paramos com muita coisa, mas hoje a gente continua com o bazar, algumas festas, mas não temos perna para tudo.

 

CMN: São os eventos que mantêm a ONG?  

Dra. Rosana: A ONG recebe subvenção municipal e uma pequena estadual, porque o valor estadual não dá para você contar muito com ele. Essa subvenção municipal a gente manda quase tudo para o RH. Nos preocupamos muito com essa questão dos funcionários, e foi bom até você lembrar disso, porque eu tenho que agradecer aqui a equipe da Recomeçar, porque trabalhar com violência é algo que afeta a gente também. 


Algumas pessoas perguntam: ‘Como você consegue?’. Eu não sei, eu só sei que eu procuro algumas maneiras de conversar. Quem me conhece, sabe que eu brinco muito, eu rio muito. Eu acho que a vida não tem que ser tão pesada assim, até dentro do acolhimento, quando eu estou com as técnicas, com as atendidas, eu brinco com elas, procuro deixar a coisa mais leve na medida do possível. Talvez isso me ajude um pouco. 


A gente vê que muitas funcionárias que já passaram por nós tiveram esse abalo psicológico, porque todos os dias você tem relatos, uns menos e outros mais graves. Muitas vezes, a gente acompanha na delegacia com um caso grave de uma mulher muito machucada. Quando não é machucada fisicamente, na alma é machucada, e aí você vai e vê as crianças muito pequenas e com aquele medo nos olhos, abaladas. Você imagina o que ela passou até aquela hora, o que ela viu. 


São tantos tipos de violência física e a crueldade desses agressores aumenta a cada dia mais, porque o homem de hoje não tá preparado para mulher de hoje, que vai atrás do trabalho, que não consegue ver a família ali passando necessidade, ela vai atrás das suas coisas, dos seus objetivos. Quando não tem necessidade financeira, se ela ganha mais, o homem também não aceita, e se ela é bem sucedida, não aceita, passa a humilhar e fazer com que ela não seja tão senhora de si.

 

CMN: E é uma questão que vai além da classe social.

Dra. Rosana: Essa questão da violência psicológica, que é tentar diminuir e querer fazer com que ela ache que não é tudo isso, e eu acho que a gente está aqui para dizer para as mulheres: ‘que sim, ela é tudo isso muito e mais’. A gente não quer, como eu já disse aqui, ser melhor do que ninguém. Nós temos homens parceiros nessa luta pela igualdade de gênero, homens que ajudaram a gente nessa corrida.


A gente vê que as estatísticas mostram quantos anos ainda faltam para conseguirmos essa igualdade, isso se a gente continuar lutando incessantemente como a gente faz. Eu falo que o nosso trabalho é 24 horas, temos hoje o acolhimento em Mogi das Cruzes e montamos um acolhimento em Jacareí por conta de uma demanda grande. Eu estou como coordenadora em Jacareí, porque você tem que capacitar novas funcionárias, porque para trabalhar com mulheres em situação de violência não basta ser uma assistência social, não basta ser uma psicóloga, uma educadora social, ela tem que ter uma empatia com essa questão. 


Acho que cada pessoa contribui para que a gente combata a violência contra mulher de alguma forma. Se você não pode trabalhar com a gente, trabalha com doação, ajudando a gente nos eventos que a gente faz, apoiando, até sentando para tomar um café e ouvindo a gente. Eu contando isso aqui para você e sabendo que isso vai chegar para tantas mulheres, para saberem que em Mogi das Cruzes existe um acolhimento para quando você precisa.


Você sofreu a violência e não pode voltar para família porque o agressor sabe onde está sua família, não pode ir para casa de um amigo, de uma amiga porque ele também conhece toda a sua rede de amigos, então você precisa ir para um acolhimento, precisa Infelizmente ser tirada do convívio dessas pessoas para salvar sua vida. E existe esse lugar, é um acolhimento que nós temos toda a segurança, que mantemos o sigilo. A gente procura ao máximo manter isso, e as mulheres precisam saber que existe esse serviço que ela vai chegar lá e vai ser cuidada.


A gente não pode levar, mas eu gostaria que todo mundo soubesse, como é o ambiente, é um ambiente muito acolhedor onde a gente tem vários chalés. Cada mulher fica no seu chalé. Elas têm o local individual, tem o ambiente de alimentação, a sala de jantar, tem a brinquedoteca que é o local das crianças brincarem, tem biblioteca. Eu acho que é uma colhida mesmo, e algumas mulheres ficam até meio dependentes dali, têm medo na hora de sair. Também é o nosso papel mostrar para ela, que ela vai ter que sair, vai ter que seguir sua vida e que a gente ainda por algum tempo vai continuar dando apoio, que ela pode ligar, tirar alguma dúvida, entrar em contato com as técnicas. 


A gente tem um telefone de plantão que atende 24 horas, e eu sou muito exigente com esse telefone de plantão, porque eu fico imaginando como está aquela mulher que naquele momento ligou para esse telefone, que é WhatsApp. A mulher, por exemplo, está em risco e manda uma mensagem nesse celular. Ela pode inclusive apagar para ela essas mensagens. 

 

CMN: Tem esse plantão tanto em Mogi como em Jacareí?

Dra. Rosana: O mesmo formato do serviço que está em Mogi e foi onde a gente adquiriu toda essa experiência, é o mesmo formato em Jacareí que a gente está desenvolvendo.


Eu faço questão de colocar esses números de plantão. É importante para as mulheres que precisam, para nós é importante o sucesso da divulgação, o sucesso do trabalho com as mulheres, mas tudo isso que a gente faz é importante para as mulheres que precisam. A gente precisa dar segurança para essas mulheres, elas vão conseguir entender quais são os seus direitos e entender que não têm que viver nesse ciclo de violência, que as crianças não têm que viver. É direito universal de criança e adolescente de não viver essa violência familiar. Eu não perco uma oportunidade de falar, desde que me deixa falar tudo que eu tenho que falar.


Eu falo que as ações para mulheres que estão em situação de violência têm que ser muito rápidas, porque para mim um minuto com uma mulher sofrendo faz muita diferença na vida dessa mulher. Eu acho que ninguém merece esse tipo de sofrimento.

 

CMN: Você percebe que hoje as mulheres estão denunciando mais? Há uma resistência para essa denúncia? 

Dra. Rosana: Quando o agressor não deixa a mulher sair do ambiente doméstico, tem até cárcere privado, e isso existe ainda hoje. Mas as mulheres estão denunciando porque a política pública está dando mais canais de denúncia. O 180 hoje é um canal de denúncia importante porque vai ser direcionado para a delegacia local e vai ter que ser investigado. É importante a gente divulgar isso. Recentemente ele passou a ser WhatsApp e a denúncia pode ser feita por mensagens. 


Também temos o boletim online, que nem toda mulher tem facilidade para fazer, mas é algo que a gente desenvolveu. A pandemia trouxe várias ideias. Quando a mulher tem muita dificuldade, a gente traz ela pra sede, onde temos notebooks e a gente com ela faz essa denúncia online que funciona muito bem também. Para quem não tem facilidade, a Recomeçar está lá e nasceu para isso, para apoiar as mulheres e para empoderar a mulher nesse sentido de conhecimento.

 

CMN: Hoje vocês estão em Jacareí e a ideia é expandir para outras cidades?

Dra. Rosana:  Aí a gente já vai falar de sonho. A idade vai chegando, porque acho que são mais de 30 anos trabalhando com esse tipo de atendimento. Esse é o sonho que esse modelo de atendimento às mulheres e os seus filhos chegue para outros municípios, porque o número de acolhimentos perto do número de municípios que nós temos no Brasil é infinitamente muito pequeno, são 20 vagas para mulheres e filhos.


Embora a lei garanta a estabilidade de seis meses nas empresas para as mulheres acolhidas, muitas ainda não assimilaram isso. Quando ela volta, é vista de uma outra forma, mas não são todas as empresas. Algumas têm um trabalho interno com reflexões sobre a questão da violência, mas ainda não são todas. A maioria ainda tem essa questão, quer se livrar porque é uma pessoa que vai trazer problema. Isso também é um sonho de que realmente entendam que todos nós somos responsáveis para combater a violência e manter uma mulher no trabalho. E uma das formas dela sair desse ciclo de violência, é ter o próprio dinheiro, poder se manter financeiramente e manter os seus filhos. A dependência financeira, dependência emocional, questão de família e de religião são ainda motivos pelos quais a mulher continua no ciclo de violência. 

 

CMN: São muitos os desafios?

Dra. Rosana: A gente tem discutido muitas políticas públicas. A Recomeçar consegue mapear tudo que falta em política pública para garantir mais segurança para as mulheres, não só na questão da violência, mas em todos em todos os segmentos, em tudo que ela precisa na saúde, na educação, no emprego e na capacitação. Mogi das Cruzes e Jacareí também não têm Centro de Referência da Mulher, que é um local onde ela pode chegar e falar das suas questões. 


Hoje temos o centro especializado também, o Cravi (Centro de Referência e Apoio à Vítima), que é regional e está em Suzano, mas atende famílias das vítimas de crimes graves, porque a família tem um abalo muito grande. É um trabalho mais específico, não é o trabalho na mesma linha como o nosso. Então a gente tem que falar da política que precisa, e eu acho que em todos os locais onde a gente vai tem que falar da questão.

 

Café com MN: Isso é uma demanda para o município, um Centro de Referência? 

Dra. Rosana: Pode ser regional. A gente tá inclusive nesse momento, no Condemat, que é o Consórcio de Desenvolvimento dos Municípios do Alto Tietê, está discutindo a implantação de um serviço sigiloso regional, porque são poucos municípios que têm. E falar em política regional é política de futuro, porque a gente está muito junto.


A gente precisa do Centro de Referência, que seja regional, que seja municipal, para que a mulher saiba que ela vai ter a sua demanda ouvida de forma especializada. Não é qualquer serviço que ela vai chegar e vai falar das suas demandas. 


A gente está falando de violência contra mulher, onde tem uma violência que é a violência sexual, aí se você vai no serviço que atende o homem, o idoso, a criança, a pessoa com deficiência, atende todos os segmentos, então a mulher tem que ter algo que é para ela, porque falar de demanda de mulher são coisas muito íntimas. Falar dessas violências é muito difícil pra mulher.


A gente tem que lutar por um Centro de Referência nos municípios, e a Recomeçar, hoje estando em Mogi, em Jacareí, o que a gente pretende é executar esse serviço com a mesma dedicação que a gente tem aqui. Eu rendo as minhas homenagens às funcionárias, às técnicas da instituição que estão conosco já há alguns anos, os funcionários que estão começando com a gente em Jacareí. É um trabalho que está no começo e depende de muita divulgação, porque a mulher vai quando é informada, quando sabe onde pode procurar. A gente quer desenvolver esse trabalho com a mesma dedicação, com o mesmo profissionalismo, pensando ninguém aqui está fazendo um favor, é direito. 


Elas agradecem muito e eu falo: ‘Tudo bem, a gente aceita o seu agradecimento, mas não precisa agradecer, porque isso aqui é uma política pública direcionada para mulher e que você tem direito. Você está usufruindo da política que foi criada para mulher’. A gente ainda tem muita vantagem, se continuarmos nessa jornada em cento e poucos anos conseguiremos a igualdade. Se a gente esmorecer, ainda vai acrescentando mais anos nessa expectativa. Cento e poucos anos ainda para alcançar a igualdade é muita coisa. Eu não desisto e eu acho que a maioria das mulheres que vão estar ouvindo a gente são pessoas que como eu não desistem fácil.

 

Serviço

A OSC Recomeçar realiza ações e participa de eventos para manter os trabalhos. A entidade conta com um número de plantão para o atendimento e orientação para mulheres vítimas de violência. Em Mogi das Cruzes, o contato é pelo telefone (11) 99948-3695, e em Jacareí, pelo (12) 99238-9675. Saiba mais também no site https://ongrecomecar.org.br/