Relação: palavra que aparece constantemente entre as diversas obras publicadas de Édouard Glissant. Entre as diferentes culturas, entre aqueles que foram escravizados e as populações e as terras para onde foram levados, entre os diversos territórios que existem no mundo. Autor de uma extensa bibliografia, o poeta, filósofo e romancista da Martinica é a grande inspiração para a Temporada França-Brasil 2025, que se propõe também a discutir e estreitar relações entre os dois países. >> Confira os destaques programação da Temporada da França no Brasil Em Paris, a Agência Brasil conversou com Sylvie Glissant, viúva de Édouard Glissant, sobre a vida e obra do pensador, que viveu entre 1928 e 2011. “Ele vem de uma região do mundo que é um arquipélago. Todas as ilhas estão conectadas entre si. Ele nunca fala somente da Martinica. Ele fala da relação existente entre as ilhas e entre todas as regiões do mundo que estão lado ao lado, que encaram o mundo juntas e que começam a ter a sensação de que tem algo que elas compartilham, algo que têm em comum”, diz Sylvie. A Martinica é um departamento ultramarino insular da França no Caribe. Cristóvão Colombo foi o primeiro europeu a pisar lá, em 1502, reivindicando o arquipélago para a regência espanhola. A colonização francesa começou em 1635. Desde então, até 1946, a Martinica, como colônia da França, produzia mercadorias como cana-de-açúcar, café, rum e cacau. Foram as pessoas escravizadas, da África Ocidental, que constituíram a origem da maior parte da população atual, de cerca de 360 mil habitantes. Não há mais população indígena. Glissant estudou em Paris ─ filosofia, na Universidade Sorbonne, e etnografia, no Musée de l’Homme. A partir dos anos 1950, engajou-se em movimentos pela descolonização, juntamente com escritores como Frantz Fanon e René Depestre, tendo assinado, em 1960, o Manifesto dos 121, em apoio à independência da Argélia. Antes disso, na juventude, foi discípulo do poeta Aimé Césaire, seu conterrâneo e fundador do movimento da negritude. As obras de Glissant evidenciam o impacto da escravidão que seguem nos dias atuais e propõe também formas de seguir. Além de toda a história pessoal e da história da Martinica, que moldaram o pensamento de Glissant, a paisagem também fez parte das reflexões, segundo Sylvie. A casa de Glissant, no sul da Martinica, na cidade Le Diamant, localizada em frente à turística Rocha do Diamante, possui um terraço, “que para ele era como um barco”, conta. “A Rocha do Diamante está no ponto de encontro de dois mares, o Atlântico e o do Caribe. É um lugar de encontro das águas e era um lugar particularmente importante para ele. É esse lugar que lhe permitia olhar para o mundo. Ele olhava para o mundo a partir deste ponto de encontro das águas”. A ideia de encontro aparece em um dos principais conceitos do autor, a crioulização. De acordo com Sylvie, muitas vezes entendido como mestiçagem ou miscigenação, algo tão presente no Caribe e também no Brasil, a ideia vai além disso. “Não é necessariamente a mestiçagem ou a miscigenação. Ele dizia que o mundo se criouliza, não que ele se torna crioulo, mas ele é feito por esses encontros inesperados, com resultados inesperados. Como na Martinica, com a chegada de pessoas que foram escravizadas, que foram transformadas em coisas, que não tinham uma existência reconhecida, que perderam o nome, perderam os direitos. Como essas pessoas conseguiram resgatar a sua comunidade, conseguiram reconstruir uma comunidade, reconstruir-se e como souberam resistir”, diz. Relação com o Brasil Mirando esses encontros, Glissant também olhava para o Brasil: “O Brasil era particularmente importante para Édouard. O país de encontro das diásporas africanas, obviamente, europeias também e dos indígenas”, conta Sylvie. Ela ressalta que o Brasil e o Caribe têm uma herança comum, a história da escravidão e também todo o apagamento que provêm disso. O apagamento das memórias e existências de cada uma das pessoas que foram escravizadas. Quando chegavam aos destinos, eram rebatizadas, ganhando novos nomes que nada tinham a ver com a cultura a qual pertenciam e eram obrigadas a deixar para trás as próprias vivências. Para o pensador, essa memória não desapareceu por completo, ela é sentida pelo próprio corpo e transborda nas expressões, como as artísticas. “Até o nome desapareceu. O que é que ficou? Ficaram rastros. E os corpos se transmitiram, os corpos levaram algo. São esses rastros que a visão poética aberta, a visão sensível consegue reencontrar, resgatar aquilo que vibra a música, o canto, a voz”, explica a viúva. Para ele, é através do corpo, através daquilo que se sente, que é possível reencontrar paisagens interiores, imaginários e diálogos. “São vozes poéticas, vozes que dizem o mundo, que dizem aquilo que muitas vezes não querem que a gente veja, que os políticos não querem que a gente veja. Tudo aquilo que faz a alma vibrante desse mundo e que, por meio dessa multiplicidade das vozes, consegue se fazer ouvir e se fazer ouvir junto”, diz Sylvie. Programação Além de inspirar a temporada, o autor fará parte da programação. Em setembro, o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, irá apresentar, pela primeira vez, um conjunto de 40 obras da coleção pessoal de Édouard Glissant, hoje preservada pelo Mémorial Acte, em Guadalupe. O acervo conta com obras de artistas da América Latina, do Caribe, da Europa e dos Estados Unidos, a maioria deles viajantes que viveram em Paris e tiveram alguma relação com o Surrealismo. Além dessa coleção própria, foi selecionado um conjunto com obras de 20 artistas contemporâneos que se relacionam com a visão de Glissant. A própria Sylvie participará da Festival Literário das Periferias (Flup), no Rio de Janeiro, em novembro. O Festival, também no âmbito da temporada, receberá uma delegação de autores, pensadores e artistas franceses da Martinica e de Guadalupe, assim como de países africanos. O colóquio O arquipélago Glissant ocorre entre setembro e dezembro de 2025, no Rio, São Paulo e Salvador, com exposições, residências artísticas e seminários sobre o legado do filósofo. Temporada França-Brasil A Temporada 2025 foi acordada em 2023, pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron. O objetivo é fortalecer a relação bilateral entre os dois países principalmente por meio da cultura. No primeiro semestre deste ano ocorreu a Temporada Brasil-França, ou seja, a programação brasileira em solo francês. Agora, no segundo semestre é a vez da Temporada França-Brasil, elaborada pela França. Os temas prioritários da Temporada são: a diversidade de sociedades e diálogo com África; democracia e Estado de direito; e, clima e transição ecológica. A programação, que ocorre de agosto a dezembro, será distribuída entre 15 cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belém, Salvador, Recife, Fortaleza, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Campinas, São Luís, Teresina, João Pessoa e Macapá. Entre os dias 17 e 24 de maio, a Agência Brasil esteve em Paris, a convite do Instituto Francês, vinculado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da França, responsável pela programação do segundo semestre, para conhecer um pouco da programação. *A repórter viajou a Paris a convite do Instituto Francês. Relacionadas Festa da Palavra valoriza narrativas decoloniais na literatura Bienal do Livro de São Paulo anuncia data para edição de 2026 Bienal do Livro no Rio tem recorde de 740 mil visitantes