Analisar a crise brasileira com alguma profundidade, na perspectiva de um futuro transformador exige ir além da simplificação maniqueísta, que divide o mundo entre "coxinhas" e "petralhas".
Não é no grito que se constrói debate. Slogans são necessários para animar a massa, mas não explicam muito. O Brasil tem duas narrativas predominantes para explicar a crise e afirmar supostas saídas imediatas: uma com a continuidade de Dilma, outra com a assunção de Michel Temer. Ambas incompletas.
O intenso debate sobre o impeachment, no qual a paixão tem superado a racionalidade, não abre espaço para uma questão fundamental: há mesmo dois projetos antagônicos de organização da sociedade brasileira em disputa? A prática dos governos de Lula/Dilma diferenciou-se decisivamente da era FHC? Sem dúvida, os programas sociais e as iniciativas para ampliar o consumo interno nos anos do lulopetismo foram mais significativos, mas há uma complementaridade entre as gestões.
FHC consolidou o controle da inflação e avançou nas privatizações. Lula (e Dilma, em menor escala) cuidou um pouco mais do "andar de baixo", costurando políticas para setores marginalizados sem afetar o "andar de cima". É a tese da conciliação de classes.
No plano da política, não se fez nenhuma reforma profunda desde a promulgação da Constituição. A chamada "Nova República" não conseguiu fugir do padrão clientelista, patrimonialista e corrompido de fazer política. Tanto o PSDB, que nasceu de um questionamento ao fisiologismo genético do PMDB, quanto o PT, que cresceu com forte base social, não mudaram o sistema: adaptaram-se a ele, inclusive à sua corrupção estrutural, endêmica.
No oceano do Estado Oligárquico de Direito as marés de lama são sucessivas. A destituição de Dilma, liderada pelo bloco social e político conservador que até há pouco a apoiava, é mera disputa de poder, para controlar a máquina do Estado. Não nos iludamos: o Brasil tem sido o país das transições intransitivas, do mudar para manter tudo como está.