Em termos literários, pensando na apropriação e recepção crítica do trabalho dos modernistas, é possível dizer que essa influência extrapolou fronteiras. Um exemplo é o impacto sobre a produção literária africana, explica a professora de estudos comparados de literaturas de língua portuguesa da Universidade de São Paulo (USP) Vima Lia de Rossi Martin.
“Na verdade, o que acho que vai impactar a produção africana não é exatamente a Semana, mas essa produção poética mais geral”, disse.
Entre os escritores que inspiraram a literatura africana estão Manuel Bandeira, Mário de Andrade e, principalmente, os escritores regionalistas como Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
“O impacto tem a ver com a escrita dos textos, com os temas e com o modo. E aqui penso muito na chamada literatura regionalista mesmo, no impacto da leitura de Vidas Secas [de Graciliano Ramos] por alguns escritores de Cabo Verde que vão, inclusive, identificar uma similaridade climática entre o interior do Nordeste brasileiro e a própria condição das ilhas vulcânicas”, disse.
“Esse exemplo dos textos sobre a seca é bem revelador desse encontro de aspirações de alguns africanos com esse movimento de autores brasileiros que, nos seus projetos literários, optam por discutir aspectos da realidade brasileira, de olhar para populações marginalizadas, de olhar para os retirantes nordestinos”, completou.
O modernismo brasileiro, diz Vima, é fonte de inspiração para a produção literária africana, principalmente a partir da década de 40.
“[O modernismo brasileiro] tem um impacto enorme para os intelectuais e escritores africanos de língua portuguesa - e estou considerando sobretudo Angola, Moçambique e Cabo Verde. No momento de consolidação daquelas literaturas e de afirmação nacionalista desses países, em que as lutas armadas estavam se constituindo e muitos intelectuais estavam travando uma batalha no campo da cultura e da literatura e tentando instituir uma literatura nacionalista, o Brasil foi uma fonte de inspiração enorme para esses intelectuais”, acrescentou.
A professora da USP cita como exemplo um poema escrito pelo poeta Ovídio Martins, de Cabo Verde, no qual ele estabelece um diálogo intertextual com um dos poemas mais conhecidos de Manuel Bandeira, Vou-Me Embora pra Pasárgada.
“O Bandeira publica esse poema em 1930, no livro Libertinagem, e o Ovídio Martins, em 1974, às vésperas da conquista da Independência por Cabo Verde, vai escrever um texto chamado Anti-evasão. Um tema forte do poema do Bandeira é o evasionismo, a ideia de poder ir pra Paságarda, que é esse espaço idílico, de possibilidade de satisfação dos desejos e tal. De poder estar em outro tempo e outro lugar de satisfação, de plenitude", analisou.
"O Ovídio Martins, num contexto cabo-verdiano de luta pela independência, vai escrever seu Anti-evasão em que, de algum modo, nega essa ideia de sair do espaço - e o espaço considerado é Cabo Verde - e vai reivindicar a possibilidade e o direito de ficar em Cabo Verde para poder lutar pela independência”, explicou.
“Esse é um exemplo muito claro desse diálogo intertextual em que a literatura e a poesia brasileira vão inspirar a produção poética africana de língua portuguesa.”
Para Vima, é possível fazer um paralelo dessa influência do modernismo brasileiro na literatura africana com a Antropofagia, manifesto escrito pelo escritor modernista Oswald de Andrade e que pretendia repensar a questão da dependência cultural do país.
“Acho que, se de um lado os escritores brasileiros foram inspiração para os escritores africanos, a apropriação que os africanos fazem da literatura brasileira não é uma apropriação pacífica. É um gesto criativo, tem a ver sim com a deglutição, com a antropofagia. Então é uma literatura angolana, moçambicana, cabo-verdiana, são-tomense que se dá em diálogo com a literatura brasileira, mas em um diálogo crítico", afirmou.
"Acho importante enfatizar essa dimensão criativa que se dá por parte de alguns escritores africanos. Não tem nada a ver com assimilação passiva, mas podemos pensar em uma antropofagia, operada em territórios africanos”, analisou a professora.
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*Colaborou Eliane Gonçalves, repórter da Rádio Nacional