No bairro Mogi Moderno, em Mogi das Cruzes, nos fundos de uma residência, cercado de livros, discos de vinil e obras de arte, está o ateliê de Nerival Rodrigues, o mestre pintor de estilo Naif, que na verdade, quase foi músico. Aos 71 anos, o pernambucano de Garanhuns, relembra as influências que hoje formam seu repertório artístico, e como a música, a política e a vida no campo fazem parte desse processo criativo, que já circula em diversos países.

Vindo de sua terra natal para o interior de São Paulo aos seis anos, no final da década de 1950, se encantou inicialmente pela música folk americana, e se aprofundou em seguida nos estudos da música barroca do século XVIII, de Sebastian Bach, até conhecer as composições de Bob Dylan, quando recebeu muita influência política, tendo ele como mentor intelectual.

"Ele (Bob Dylan) era um cara polêmico, que não teve medo de falar da realidade social do povo americano, do negro e dos nativos americanos, que foram quase totalmente extintos do território. Coisas que também aconteceram no Brasil", mencionou.

Seu processo criativo logo se vincula a musicalidade, que se materializa também em alguns de seus quadros. "Em minhas obras têm muitos violeiros. Eu cheguei a fazer dois anos de violão no conservatório de Suzano na década de 90. Mas a música já me atingia no final dos anos 60. Eu gostava de ouvir os programas que tinham músicas seletas, músicas de classe A", recordou Nerival.

Com bom humor, o pintor disse que o "culpado" por ele ter entrado no mundo das artes plásticas foi o então professor da Universidade de São Paulo (USP), Hélio Ribeiro, que faleceu em 2000. "O Hélio me disse: 'para que estudar música? Você é um artista nato. Desiste de ser músico, você será um grande nome da arte Naif'", lembrou.

Arte, música e política

Assim, o artista também se viu influenciado pelo movimento tropicalista e outros músicos dos anos 1960, como Alceu Valença e Paulinho Nogueira, de quem foi amigo. Em contraste, sofria com as consequências da ditadura, sobretudo a partir do Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968: "Como artista eu tive problemas na Praça da República (São Paulo). Um dia as Forças Armadas fecharam a praça com a cavalaria, e o pessoal que estava com maconha ou algum livro considerado subversivo, como 'Revolução Cubana' ou coisa parecida, iam todas para a cadeia". Momento que considerou ser uma relação complexa entre arte e política, que reverbera até hoje. "O artista, se ele escolhe declaradamente um lado político, ele não é um verdadeiro artista", afirmou.

Autodidata, Nerival começou a pintar em 1968, quando ainda residia em Suzano, como um processo natural, se aproximando mais de técnicas impressionistas. Neste mesmo ano, o pintor ganhou um livro sobre a história da Semana de Arte Moderna de 1922, e avaliou que os artistas brasileiros, como Tarsila do Amaral, eram muito influenciados pela arte Naif. Foi quando o pernambucano passou a adotar o estilo, tendo como base também as obras de Henri Rousseau, pioneiro da técnica.

Tendo se mudado para Mogi em 1983, sua carreira despontou junto ao processo de redemocratização quando, em 1985, o então secretário de Cultura do Estado, Jorge da Cunha Lima, que faleceu em agosto do ano passado, lhe deu a oportunidade de fazer uma exposição na sede da secretaria.

"Jorge da Cunha Lima foi quem apresentou, naquela ocasião, minha primeira mostra individual em São Paulo. E ali era frequentado pela intelectualidade, professores de direito e outros. Meu nome foi descoberto naquele momento, e foi quando eu também me descobri como artista", disse o mestre Naif.

Retrato da vida simples

Outra inspiração de Nerival é fruto da vida no campo. Ao se mudar para São Paulo no final da década de 1950, o artista viveu uma infância permeada de plantações de café na cidade de Auriflama, sendo o cultivo um tema muito presente de suas obras.

"Eu colhia café desde os meus sete anos de idade. Eu gostava, achava aquilo bonito. Eu comia o café maduro. É doce, bem gostoso. Eu, uma vez, até quase me engasguei. E meu pai sempre brigava, me ensinando que não se pode comer aquilo que é da colheita", se recordou saudoso.

O artista também trabalhou no cultivo de algodão. "Meu cotidiano nos anos 60 era o dos lavradores, eu vivi na roça até os meus 16 anos. De manhã eu ia para a escola e à tarde colhia algodão, e gostava muito. Há histórias muito engraçadas. E quando eu ouvi pela primeira vez a música 'Campo Branco', do Elomar, eu despertei para retratar os campos de algodão", disse o artista.

Dentre suas obras, o pintor também faz leituras de pontos de Mogi das Cruzes sob a perspectiva de como eram as construções no passado, e de como a cidade se organizava, partindo da consulta de professores universitários. Hoje, um dos seus projetos é focado em retratar a fauna e flora da cidade, que estão sob a ameaça de extinção.

Atualmente, Nerival está com uma exposição de arte Naif em Gramado, no Rio Grande do Sul, cuja mostra foi inaugurada no dia 3 de maio. Outras obras do artista também estão disponíveis no acervo da Pinacoteca de Mogi das Cruzes, localizada na rua Coronel Souza Franco, 993, centro.

*Texto supervisionado pelo editor