O Café com Mogi News desta terça-feira (29) destaca o Programa Oficina Escola de Patrimônio, Artes e Ofício (Poep), uma realização da Prefeitura de Mogi das Cruzes, por meio das Secretarias de Cultura e de Assistência Social. A primeira turma oferecendo oportunidade para pessoas em situação de vulnerabilidade foi formada neste ano, focada na educação patrimonial com oficinas teóricas e práticas voltadas para o restauro de patrimônios históricos da cidade. O entrevistado é o diretor do Departamento de Patrimônio e Arquivo Histórico de Mogi, o arquiteto Ubirajara Nunes Pereira de Souza, o Bira, que coordena o programa. 

Café com Mogi News: Como surgiu a ideia de um projeto voltado para o patrimônio, para o restauro? 

Ubirajara Nunes Pereira de Souza: Esse projeto é um sonho que está se tornando realidade aqui na cidade. É um projeto que visa a inclusão de jovens e pessoas em situação de vulnerabilidade, que agrega a questão do patrimônio histórico, a valorização, a preservação e a restauração dos bens culturais da cidade. Esse projeto se chama Programa Oficina Escola de Patrimônio, Artes e Ofícios (Poep). 

Nós conhecemos esse projeto já há algumas décadas, na cidade de Santana de Parnaíba, e de lá para cá, dentro da Secretaria da Cultura,  juntamente com os Conselhos do Patrimônio (Comphap), o Conselho Municipal de Cultura, e a própria Secretaria, estabelecendo os seus planos municipais, para que a gente conseguisse, em um dado momento, lograr êxito e implantar esse projeto na cidade. 

A partir do mês de maio, nós começamos uma tratativa junto com a Secretaria de Assistência Social, que é parceira da Secretaria de Cultura no projeto, através do programa Conduz. A gente implantou no Casarão do Carmo, utilizando o prédio como uma oficina escola, literalmente, para a aplicação dessa prática com o curso de formação da parte de técnicas construtivas de restauração.

Café com MN: É muito mais do que preparar uma mão de obra, você está trazendo inclusão, transformação, descobrindo talentos.

Ubirajara: Exatamente. Isso é o mais bacana do projeto, porque trabalhamos com jovens que têm o seu encaminhamento através da Secretaria de Assistência. Ela que faz essa ponte com a Secretaria de Cultura. Então, nas inscrições, a gente faz entrevista e, na própria entrevista, a gente já começa a observar alguns talentos. E, graças a Deus, temos tido bastante sucesso. O trabalho implantado, como eu disse, a gente conheceu em Santana de Parnaíba e nós trouxemos o coordenador desse curso para trabalhar com a gente. O  Turinã Inácio já tem essa experiência, inclusive, ele já é a segunda geração da família. O pai dele, o sr. Jair Inácio, conhecido nacionalmente na área de patrimônio, já falecido, ele implantou essa proposta de formação de mão de obra em Ouro Preto (MG).

O Turinã depois continuou esse trabalho. Ele trabalhava com o pai e continua toda essa trajetória de formação de jovens na área. E foi quando eu o conheci, em 2007. Visitei Santana de Parnaíba e fiquei encantado com o projeto. Dentro de toda essa política de estrutura de Cultura da cidade, que já vinha há um bom tempo, fomos programando o estabelecimento desse projeto aqui em Mogi. Eu digo que tudo vem no tempo certo. A gente vai precisando ter a infraestrutura para isso. E aí o destaque para os Conselhos e a própria estrutura da Secretaria. Quando os conselhos estabelecem as suas políticas de preservação, no caso o Conselho de Patrimônio (Comphap). 

Café com MN: O Comphap (Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Artístico) é bem atuante. 

Ubirajara: O Comphap, exatamente. Envolve tanto o segmento da sociedade civil como o poder público, e aí a gente destaca a Associação dos Engenheiros e Arquitetos, que atua fortemente, a própria OAB de Mogi das Cruzes, as universidades, enfim. Temos várias instituições vinculadas ao Conselho. E na parte do Conselho Municipal de Cultura, a implantação propriamente da política cultural. Com o Plano Municipal de Cultura, as gestões estabelecendo essas metas do plano, sempre implantando as suas diretrizes. A mais recente foi a criação do Departamento de Patrimônio Histórico, no qual o Glauco (Ricciele), meu grande amigo, historiador,  foi o primeiro diretor na atual gestão. Agora, o Glauco assumindo a Secretaria Adjunta de Cultura, ele me incumbiu essa responsabilidade, com a Secretária Claudinéli (Moreira Ramos), de dar continuidade a todos os projetos e programas do departamento. E para mim está sendo um desafio muito gostoso. 

Café com MN: Você já vem de uma longa carreira, na verdade, no patrimônio, no Arquivo Histórico. Sua formação é arquiteto?

Ubirajara: A minha formação é Arquitetura, mas eu comecei a trabalhar na Prefeitura como office boy em 1989, e fui trabalhar na área da Cultura. Eu não sou de Mogi, mas eu me tornei Cidadão Mogiano esse ano. Fui homenageado na Câmara. Então, hoje eu falo que sou mogiano mesmo, com o título. Todo o repertório, todas as informações na área de Cultura, o conhecimento que eu vim adquirindo desde então, só foram aumentando, progredindo ao longo desses anos. Eu tive grandes referências, secretários, historiadores, produtores culturais.  Eu já tinha essa referência de Arquitetura, de construção civil com meu pai, que era mestre de obras. E quando eu chego na Cultura e começo a trabalhar com patrimônio, fui trabalhar no Casarão do Carmo, e eu já me identifiquei. 

A minha formação começou a ser direcionada nesse sentido desde então. Ensino técnico e depois fui fazer Arquitetura e Urbanismo na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), onde eu também tive grandes mestres. Depois fui me especializar. Em 2003, quando o professor Jurandir Ferraz, saudoso historiador de Mogi das Cruzes, se estabelece na Secretaria, isso na gestão do prefeito Junji Abe, ele decide, juntamente com toda a proposta de plano de governo da época, criar o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio (Comphap). E lá estava o Ubirajara fazendo Faculdade de Arquitetura, trabalhando já na área, todos os trabalhos da faculdade sempre direcionados na questão da preservação. Por sugestão, inclusive, de uma grande amiga, da Tereza Cristina Vaz, ele me convida, e aí as oportunidades foram surgindo. O professor me convida para ser o suplente na cadeira do Conselho do Patrimônio, eu conheço a Ana Sandim (arquiteta e professora universitária). Hoje presidente do Comphap. Eu brinco que ela é sempre presidente, porque deve ser a quinta gestão que ela preside o Conselho. 

Café com MN: O Conselho do Patrimônio é um dos mais atuante?

Ubirajara: O Conselho do Patrimônio está entre os cinco primeiros conselhos estabelecidos em Mogi. Isso, já no início dos anos 2000, quando começa efetivamente essa política de implantação de Conselhos e a participação da sociedade mais diretamente nas discussões das políticas junto ao poder público. E também, nesse período, começa a implantação do Estatuto da Cidade, do governo federal, e toda uma política voltada à questão do planejamento urbano de uma forma geral, e o patrimônio está inserido. E quando a Prefeitura implanta o Comphap, a gente já tem aqui pessoas referências na área para que possa se estabelecer uma base sólida. Desde então, essa política cultural vem se desenvolvendo, algumas ações e resoluções do Conselho se tornaram leis a partir de então. E é isso, agora a gente dá continuidade e chegou a época da gente implantar uma política de preservação que favoreça a mão de obra. 

Café com MN: E também trazer essa juventude.

Ubirajara: Exatamente. O que acontece? Na área de patrimônio, as pessoas, notadamente, sabem que é custosa, tem um valor alto. E a gente entende que tudo isso se deve, também, à questão da mão de obra porque é escassa. As pessoas hoje não detêm muito mais o conhecimento da técnica construtiva tradicional. E quando a gente fala de patrimônio... 

Café com MN: Não é ligado à tecnologia que a gente vê hoje, inteligência artificial. 

Ubirajara: Exatamente, não tem nada disso, é mão na massa mesmo. E os tipos de materiais utilizados, hoje são muitos produtos químicos que se utilizam na construção civil. E no caso da técnica construtiva tradicional, a maior parte deles são produtos naturais que a gente utiliza as referências, os próprios compostos orgânicos.  Como a gente não tinha, até então, mão de obra suficiente para atender as demandas, acaba sendo um gargalo. 

Como estávamos falando do Conselho do Patrimônio, quando a gente recebe um processo na área do Centro Histórico de Mogi das Cruzes, que envolve a área de proteção do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) e do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que o proprietário recebe a recomendação do Conselho de preservar a sua fachada, ele tem toda uma necessidade de utilizar os materiais adequados. Só que muitas vezes esses materiais estão escassos e a notícia que a gente tem: "Mas eu não conheço, eu não tenho um pedreiro, uma pessoa qualificada que entenda esse tipo de técnica construtiva". Então, toda essa demanda vai sendo represada no patrimônio. E aí entra a questão do Programa Oficina Escola. A gente entra com esse encaminhamento, fala do programa, faz algumas visitas.

Café com MN: Tem a parte prática e teórica? 

Ubirajara: A gente consegue, com essa implementação do programa, suprir essa necessidade. Logicamente, estamos agora na primeira turma. Como eu disse, o programa começou em maio.

Café com MN: Qual a faixa etária?

Ubirajara: A faixa etária vai desde os 16 anos, mas a gente tem pessoas da melhor idade também. Como é o primeiro programa, a primeira turma, a gente fala que nesse caso trabalhamos com todas as faixas de idade, até para entender como que a gente vai trabalhar. E o que é mais interessante, dentro dessa diversidade de idade, dessa variedade, a gente consegue encaixar cada um numa demanda de patrimônio. Seja num trabalho mais meticuloso, detalhado, como num trabalho mais necessário, como a utilização de revestimento, a aplicação de argamassa.

Café com MN: Você vai identificando as habilidades.

Ubirajara: Essa parte ficou a cargo da Secretaria Municipal de Assistência Social, a gente participou das entrevistas também, e esses encaminhamentos foram feitos através do programa Conduz. 

Café com MN: Quantas pessoas nessa primeira turma?

Ubirajara: A primeira turma a gente tinha previsto 30 pessoas. A gente dividiu em duas turmas, 15 de manhã e 15 de tarde, e acabamos fechando em 33, porque houve maior procura. E o que é interessante do programa, também, é que temos a chamada visita mediada. A gente abriu um dia da semana, todas as quartas-feiras das 10h às 11h, e das 14h às 15h, para receber visita de escolas, cursos técnicos e também faculdades. E olha que interessante, os alunos de Arquitetura das faculdades se interessaram em participar do programa também. Então, já pensando nisso, na estruturação do programa, a gente criou também as vagas voluntárias. Por quê? Porque o programa oferece uma bolsa auxílio para os alunos em situação de vulnerabilidade. E o programa voluntário, a gente não destina recursos, o aluno se inscreve, geralmente nos cursos técnicos, para aprender a técnica também. Então, tem toda essa equiparação aí, tanto da parte de voluntário quanto da parte de bolsista. 

Café com MN: É um programa piloto e vai se ajustando? 

Ubirajara: Exatamente. Apesar do programa já ter, tradicionalmente sido implantado em outras cidades, não somente Santana de Parnaíba, mas Iguape, e se não me falha a memória, Jacareí, e cidades do Nordeste também receberam a implantação desse programa. Cada cidade tem a sua peculiaridade, sua característica, então a gente vai adaptando às necessidades. A própria utilização do equipamento cultural nesse caso, e aí uma participação muito forte do Comphap nesse sentido, foi a gente implantar esse projeto num patrimônio cultural tombado, reconhecidamente como um bem a ser preservado na cidade, que é o Museu Mogiano, o Casarão do Carmo, que foi um dos primeiros imóveis por decreto lei reconhecidos como patrimônio municipal, estabelecidos na área do Centro Histórico pelo Conselho de Patrimônio em 2012. 

A oficina acontece no interior do Casarão, até porque é uma área mais fechada, então temos toda essa perspectiva também de seguridade. Os alunos começam com cursos na área de utilização de proteção de equipamentos (de proteção individual - EPI), e também para trabalhar em altura. Então a NR35, todos tiveram que fazer o curso, são certificados. Depois de estabelecidas todas essas normas, eles começam a aplicar a prática. Lembrando que o curso teórico perdurou de maio a julho. Então eles tiveram aulas com o arquiteto Paulo Pinhal, professor universitário aqui de Mogi das Cruzes.

A Ana Sandim e também o professor e historiador Glauco Ricciele, que falou da questão da história de Mogi. Então, quando esses alunos começam toda essa prática, essa experiência, eles fazem literalmente uma imersão na história da cidade. Não é simplesmente ir lá e fazer uma recuperação de fachada ou mexer numa porta, numa janela. Eles conseguem entender a essência e a história que está vinculada.

Café com MN: Mogi é uma cidade antiga, quase indo para os 500 anos.

Ubirajara: Exato, 464 anos, e tem todo esse repertório de técnica construtiva que envolve Mogi. Mogi é uma das cidades do Alto Tietê, se não a cidade, que tem o maior número de patrimônios, e já tem uma política de preservação do seu patrimônio. 

Café com  MN: Na verdade, as cidades foram se emancipando a partir de Mogi. 

Ubirajara: Nós dizemos que Mogi é a cidade mãe, daqui as demais foram se desmembrando. Então, qual que é a nossa perspectiva com a implantação desse programa? Não somente a gente recuperar os patrimônios da cidade, começando uma ação no entorno do Centro Histórico, ali no Largo do Carmo. A perspectiva é recuperar o Casarão do Carmo em etapas, porque cada turma tem o seu módulo, e a perspectiva é que no ano que vem tenhamos mais módulos. Na finalização do terceiro módulo, a gente consegue formar essa turma detentora da técnica construtiva.

Café com MN: A gente estava falando, também, desse projeto para a Câmara, para virar uma política pública mais efetiva. Como é que está esse processo?

Ubirajara: A nossa secretária de Cultura, Claudinéli, vem desenvolvendo, juntamente com o Glauco, toda elaboração de um programa, de um projeto de lei, para que seja encaminhado, através da nossa Prefeitura, pelo prefeito Caio Cunha, para a Câmara Municipal, para que a gente consiga transformar esse programa numa política estabelecida como lei. Para que a gente tenha a continuidade do programa, porque extrapola essa questão de projeto da gestão. Ela tem todo esse vínculo com a preservação da identidade cultural da cidade, a valorização dos bens culturais. 

A gente entende que isso, além de ser uma proposta da atual gestão, ela se estabelece como uma política que está ali vinculada ao próprio Plano Municipal de Cultura, que já tinha essa diretriz. Se a pessoa procurar lá no eixo, se não me falha a memória, no eixo 8 tem lá o estabelecimento de um Programa Oficina Escola. Então, essas diretrizes estão muito bem implantadas pelos Conselhos, pelos órgãos vinculados à sociedade civil, ao poder público. É uma continuidade. Então, acreditamos que sim. É um programa tão bonito, que valoriza não somente a questão do patrimônio, mas a gente consegue dar visibilidade a pessoas que, talvez seja até uma expressão estranha, que não existem ou sejam visíveis para a população. E também tem essa questão da apropriação. Quando as pessoas entendem o que elas estão fazendo, que elas estão ali envolvidas, e muitas vezes envolvidas de uma maneira que se apaixonam, descobrem através do acesso a informação, a gente consiga estabelecer na cidade essa visibilidade do patrimônio. 

Café com MN: Ter aquilo como nosso mesmo, a gente, como sociedade, abraçar a história da cidade.

Ubirajara: Recentemente, eu viajei para o exterior, e a gente consegue enxergar essa valorização tão forte lá fora. E a gente pensa: "Por que aqui a gente não consegue fazer isso?". Eu aprendi, ao longo da minha jornada na Prefeitura, que a gente às vezes quer as coisas para ontem, e não é assim. Se você faz algo sem uma estrutura, lembrando até na própria Engenharia, se você não faz uma base sólida, você talvez não logre êxito lá na frente, talvez dê alguns problemas estruturais. Quando a gente estabelece essa estruturação com legislação, com respaldo da própria Associação dos Engenheiros e Arquitetos, que já recebeu essa informação, já foi feito um encontro lá com a diretoria, para levar essa proposta de transformar o Programa Oficina Escola num projeto de lei, e buscando também o apoio da sociedade civil nesse plano. A gente entende que estamos indo num caminho certo e que vamos ter muito sucesso. Eu acredito.

Café com MN: Deixe uma mensagem final para a gente, falando dessa importância do patrimônio.

Ubirajara: Então, algumas das frases chavões: "Não existe futuro sem passado". Se a pessoa entende o seu passado, ela consegue estabelecer e planejar um futuro melhor. A gente tem uma cidade muito bonita, estamos muito próximos da capital, mas Mogi das Cruzes ainda tem toda uma identidade de uma cidade do interior. As pessoas se cumprimentam na rua. Muitas vezes, apesar dessa dimensão que a cidade vem ganhando, ainda temos aquele aspecto de cidade em que todos se conhecem, tem referências. E a valorização do patrimônio é justamente essa. Quando a gente entende a nossa identidade, conseguimos estabelecer os critérios que vão desde o respeito, até as pessoas se reconhecerem, mesmo como mogianos. E eu reconhecidamente, também, como mogiano. Tenho um carinho muito grande pela cidade onde eu constituí minha família, tenho os meus amigos. Estamos aí para manter toda essa identidade histórica e cultural para as futuras gerações.