O Café com Mogi News desta semana entrevista a arquiteta e gestora de projetos Camila Caruso, que se especializou e dedica-se à inserção da acessibilidade como pauta na arquitetura, visando a integração social e a garantia do direito de descolamento das pessoas com deficiência. A paixão da mogiana pela área vem ainda do Ensino Médico, quando cursou o Técnico em Edificações, e atualmente cursa pós-graduação em Arquitetura Hospitalar. Com experiência em grandes projetos, inclusive na Prefeitura de São Paulo, Camila atuou nas obras que trouxeram acessibilidade ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida.
Para a arquiteta, apesar dos avanços o tema da acessibilidade ainda é pouco discutido pelos órgãos públicos e até mesmo no meio acadêmico, o que torna essencial a conscientização também de outros profissionais da arquitetura. Nesta entrevista especial, Camila ressaltou ainda algumas especificidades de Mogi das Cruzes para inserir e adequar-se, já que trata-se de uma cidade antiga e com diversos patrimônios históricos. Segundo ela, a mudança é possível, como ocorreu em várias cidades do exterior.
Saiba mais nesta entrevista, produzida com apoio da Padaria Tita e o vídeo elaborado pela empresa F-Studio - Comunicação Institucional.
Café com Mogi News: Como foi seu início na arquitetura?
Camila Caruso: A arquitetura já é um pouquinho de veia da família. Minha mãe não é arquiteta, mas esteve sempre envolvida em reforma e decoração, e eu acabei pegando gosto. Eu fiz Edificações na Etec Presidente Vargas, gostei bastante e optei pela arquitetura. Eu me formei em Mogi, e até o quarto ano eu fiz estágio aqui, mas eu queria aprender mais. Saí de Mogi e fui estagiar em São Paulo. Foi aí que o universo se abriu com opções de escritórios. Você entende o quanto é vasta a área da arquitetura. Depois que me formei, eu acabei me mudando para São Paulo.
CMN: Quais são suas referências no mundo da Arquitetura?
Camila: Eu gosto bastante da Lina Bo Bardi, que é do Sesc Pompeia, que eu adoro; o próprio Masp, na avenida Paulista. O próprio Oscar (Niemeyer), enfim, há vários.
CMN: Como que você acabou enveredando para o lado da acessibilidade?
Camila: Isso foi bem por acaso. Eu estava trabalhando em uma empresa em São Paulo, e surgiu uma nova lei de que os bancos deveriam ser acessíveis. Houve uma transformação que teve de ser muito rápida para cumprir um TAC (Termo de Ajuste de Conduta). Eu estava no escritório e chegou a demanda. Eram pouquíssimas pessoas que entendiam sobre isso. Eu acabei entrando no meio, gostei bastante e, passados mais ou menos dois anos, abriu a Secretaria da Pessoa com Deficiência na Prefeitura de São Paulo. Eles estavam buscando arquitetos que tivessem uma ligação com acessibilidade e me convidaram para trabalhar na Prefeitura.
A partir de então eu passei a ver a acessibilidade de outra forma, porque lá haviam várias pessoas com deficiência e quando você passa a conviver no dia a dia, começa a entender o outro lado. Foi aí que eu abracei a causa e quis entrar nisso para ajudar.
CMN: E como é introduzir esse tema hoje? As cidades não foram pensadas na questão da acessibilidade, como essa transformação pode ser feita?
Camila: É uma pergunta difícil. Penso que são vários veios, desde a conscientização, pois isso deveria ser falado mais nas escolas, e também pelo poder público. Eu acho que deveria ter também uma cobrança maior do órgão público de, por exemplo, quando for ter um projeto novo, cobrar para que ele seja acessível. É um conjunto de coisas. Realmente educar as pessoas para que elas possam entender, porque muita gente tem a impressão de que acessibilidade é banheiro e rampa. Então todos os lugares que eu vou, me falam: ‘não, mas aqui está acessível, porque tem banheiro e tem rampa’. Mas a acessibilidade é muito maior do que isso. Tem a parte do braille, das pessoas surdas.
CMN: A gente tende a pensar na questão da mobilidade reduzida, mas não é só isso.
Camila: Exatamente. Todo mundo pensa nisso, e não é. As pessoas não pensam no entorno. Eu faço às vezes um empreendimento maravilhoso e não tem como a pessoa chegar, não tem uma rota acessível. Acessibilidade é analisar como um todo, é ter uma visão ampla. Às vezes no escritório o pessoal fala: 'o banheiro está pronto', e eu falo: 'mas onde está o estacionamento?', 'está do outro lado', então não adianta nada. A pessoa vai percorrer um caminho absurdo. E existe norma para isso, mas a norma não basta simplesmente ler, tem que interpretar, entender o que está acontecendo e ter a sensibilidade para aplicar em um projeto.
CMN: E quanto à profissionalização, nas universidades já se pensa nisso ou é um tema que ainda precisa ser introduzido?
Camila: De um tempo para cá várias universidades tem matéria voltada para isso. Eles incentivam o estar acessível, mas o estar acessível é sempre: 'você considerou o banheiro de deficiente? A rampa está aí? Tem elevador?'. A faculdade ensina o que é básico, não vai mais a fundo.
CMN: A acessibilidade é uma questão de cidade?
Camila: Sim, com certeza. Eu falo que acessibilidade sempre é o direito da pessoa ir e vir sozinha. Não adianta deixar acessível uma parte, mas ela precisar da ajuda de alguém para acessar outro lugar. O principal é se a pessoa consegue percorrer sozinha, se ela consegue ir a um banco sozinha. Isso é acessibilidade. Não é só eu colocar uma faixa de pedestre. A pessoa consegue ir para o outro lado? Tem guia rebaixada?. Por isso que eu falo que a acessibilidade é muito ampla, vai além do banheiro e da rampa.
CMN: Em quais projetos de acessibilidade você está trabalhando hoje e quais foram suas principais entregas com esse foco?
Camila: Tem um que é o mais famoso de todos, que é o Santuário da Nossa Senhora Aparecida. Foi um projeto que eu desenvolvi toda a parte de acessibilidade. Fizemos tudo, adaptamos todos os banheiros, as rampas foram todas refeitas com a inclinação certa, os corrimões todos na altura certa, mapa tátil. Se você reparar lá tem a rota acessível de piso tátil. A pessoa chega no mapa tátil com as informações para identificar onde está a igreja, os comércios, entre outros. Lá nós trabalhamos a acessibilidade como um todo.
Fora esse, que acho que foi o boom da minha profissão, eu fiz a adaptação de 250 lojas do Pão de Açúcar, em São Paulo, além do Clube Pinheiros e shoppings. Fiz bastante coisa. A minha empresa, a DUCA Acessibilidade já há 13 anos e há 13 anos ninguém falava disso. Quando eu fui montar o CNPJ da empresa, o nome, o contador falou para mim: 'você é a única empresa do Brasil que vai ter acessibilidade no nome'.
CMN: Foi a primeira empresa do Brasil?
Camila: A primeira do Brasil. Foi um pouco visionário colocar acessibilidade no nome da empresa. Hoje ela tem 13 anos, e (a acessibilidade) é uma vertente da empresa. Tenho trabalhado mais também o nome Camila Caruso, porque ninguém sabia quem estava por trás da DUCA. Faz cinco anos que quase não uso a DUCA, mas uso para participar de licitações públicas e projetos maiores, e no Instagram eu utilizo mais Camila Caruso para a pessoa saber que sou eu.
CMN: E hoje nós temos pessoas com deficiência atuando na arquitetura?
Camila: Tem. Quando eu tinha um escritório em São Paulo, eu recebi um currículo do Mateus. Ele sempre mandava o currículo para mim e falou que queria uma entrevista. Ele não tem os dois antebraços, chegou lá e eu perguntei: 'Mateus, você trabalha com AutoCAD? Trabalha desenhando?', e ele falou que fazia tudo. Eu fiz um teste e ele foi contratado. A gente até fez uma ação com ele em São Paulo, percorrendo a avenida Paulista, falando desse preconceito das pessoas acharem que com as limitações as pessoas não se desenvolvem. Ele aprendeu a trabalhar com a deficiência dele. Trabalhou no escritório de dois a três anos, até que passou em um concurso público em São Paulo. Ele é meu amigo até hoje. Não tive nenhuma dificuldade com ele, era um ótimo funcionário. A gente precisa abrir um pouco o leque das coisas e dar oportunidade para as pessoas.
CMN: Sobre Mogi e o Alto Tietê, quais são as principais dificuldades para termos acessibilidade?
Camila: É difícil. Primeiro porque é uma cidade antiga e histórica, e todo mundo usa isso como justificativa para ficar paralisado. Mas se você for para fora do Brasil, todas as cidades antigas fazem a acessibilidade, respeitando o patrimônio histórico. É uma acessibilidade que é provisória, é uma rampa móvel, eles usam esses artifícios. Mogi tem condições de avançar, deveriam ter mais políticas públicas relacionadas a isso, mas acho que tem um grupo grande em Mogi que discute isso.
O próprio Conselho da Pessoa com Deficiência, vejo que eles brigam, discutem, estão em cima. Mas sem poder público, não há mudança. Penso que precisamos de leis, fiscalização, e os próprios arquitetos perderem esse preconceito de achar que um projeto acessível é feio. Geralmente as pessoas fazem obrigadas. Hoje quando você vai fazer um projeto, o RRT (Registro de Responsabilidade Técnica) que o responsável pelo projeto assina, precisa certificar se está acessível ou não. Só que a pessoa colocando acessível com o banheiro e a rampa 'ok', e não é só isso.
CMN: Como resolver a questão do preconceito?
Camila: Acho que o preconceito se resolve mais como um trabalho de formiguinha. Fazer várias ações, levando as pessoas para conhecer, vivenciarem e conviver com pessoas, entender o dia a dia e ser mais humanas. Falta isso. Deixar um pouco de ser egoísta e pensar no próximo. Às vezes até parece que vai para frente mas dá dois passos para trás. Há quatro anos eu fiz uma ação aqui em Mogi fazendo as pessoas vivenciarem essa experiência de acessibilidade. Havia gente com muleta, cadeira de rodas, percorrendo o centro. Muita gente entendeu o que eu quis dizer com aquilo, porque é pegar ali na ferida da pessoa para entender o que ela passa. Só assim ela vai começar a pensar no outro. Penso que é importante ter mais ações assim, em escalas maiores.
CMN: Você também está se especializando agora em Arquitetura Hospitalar, também com atenção ao impacto da acessibilidade?
Camila: Acho que hoje as pessoas estão preocupadas com o bem-estar mesmo do paciente, o ambiente em que o paciente está. Seja na parte acessível, de como ele circula, do ir e vir; seja na parte psicológica do ambiente, do que ele proporciona, como cores, sons, cheiro, tudo isso é trabalhando na Arquitetura Hospitalar. Eu faço hoje isso para agregar e oferecer para o cliente um bem-estar total. Seja para aplicar isso na casa, que chamamos de arquitetura humanizada, a casa para ser vivida. O hospital não se relaciona só ao hospital, ele conversa com tudo, com a academia, com a clínica odontológica, tudo o que está em volta da Vigilância Sanitária e pensando sempre no bem-estar do paciente.
CMN: Como é a questão do projeto englobando tudo isso?
Camila: É um processo. Tentamos entender o espaço que temos, para o que vai ser utilizado e quem são as pessoas que serão atendidas. Geralmente colocamos para todas as pessoas, sem restrição. Assim, trabalhamos a parte de interiores de forma aconchegante, trazendo a humanização, e não criando prédios em que você entra e não consegue ficar cinco minutos, porque ou é escuro, ou a cor não favorece, ou é tem muito som. Hoje se coloca mais verde e com jardim, buscando mais esse lado.
CMN: Às vezes o prédio pode ser lindo por fora, mas não dá para ficar dentro.
Camila: Exatamente. Um exemplo até, aproveitando o gancho da minha pós-graduação, antigamente os hospitais eram feitos sem janela e o paciente se sentia dentro de uma prisão. Então foram feitos estudos para colocar as janelas, pois a visão de fora era muito importante para ele saber há quanto tempo está lá. E isso são avanços, e cada dia mais se avança. É igual analisar hoje o Albert Einstein no Morumbi, só tem jardim lá dentro, nem parece que se está em um hospital. A ideia é essa, fazer um projeto para se sentir em casa. Todo mundo tem um pouco de pânico de entrar em hospital, e se você vai para o Albert Einstein do Morumbi você fica deslumbrado, porque é uma arquitetura bem feita e humanizada.
CMN: Até contribui para a recuperação do paciente?
Camila: 100%. Você vai para um espaço que é bonito, que é bem feito e pensado para você, porque isso também influencia. Os profissionais fazem o projeto pensando neles mesmos. Pelo menos os meus projetos, que desenvolvo no escritório, é o projeto do meu cliente. Ele vai falar o que ele quer, assim a gente adapta às normas e tornar habitável, mas o projeto é para ele.
*Texto supervisionado pelo editor.