Acompanhando o noticiário sobre operações da polícia no Rio de Janeiro, a música “Menino”, do Milton Nascimento me veio à cabeça. Tem um trecho da letra que ajuda a dar significado ao que estamos assistindo cotidianamente. Eis o trecho: quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte, talhada a ferro e fogo, nas profundezas do corte, que a bala riscou no peito, quem cala morre contigo”.
Lembrei da música ao ler a notícia da morte da menina Eloah, cinco anos, morta quando brincava em sua casa, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Ela morreu com um tiro no peito, como o menino da música, vitimada por uma “bala perdida”, na troca de tiros entre policiais e bandidos.
Vivemos um tempo de muita violência. Tanto é que vários estudiosos afirmam que em nosso país edificamos a chamada “cultura da violência”. Podemos classificar a violência como uma forma de afrontamento aos direitos considerados invioláveis na sociedade - direitos civis, sociais, entre outros – direitos esses que são fruto de um processo histórico que acompanha a humanidade desde a Antiguidade, manifestando-se de diversas maneiras, dependendo dos hábitos e costumes de cada grupo social.
Mas assim como foi um processo histórico que nos legou tais direitos, a violência ora em curso não foi cravada em nossa realidade da noite para o dia. Ela também se deu através de um processo longo, encaminhado por discursos, ações e omissões de determinados segmentos sociais. Nesse sentido, a violência é uma construção cultural-histórica cada vez mais enraizada em uma sociedade desumanizada, desigual e doente.
Se não, vejamos. Nos últimos sete anos, o Rio de Janeiro registrou 601 crianças e adolescentes baleados só na Região Metropolitana com 267 vítimas fatais. Ainda no Rio, 48% das crianças baleadas foram atingidas em ações policiais.
Ao olhamos para o país a situação é também muito grave. Entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de até 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil – uma média de 7 mil por ano. Em sua grande maioria, são crianças e jovens pobres e negros. E isso não parece sensibilizar em nada a nossa sociedade.
Quantos sonhos não enterramos com essas crianças e jovens que morrem de forma tão bárbara. Quanta dor não fica latejando no corpo de seus familiares. E qual deverá ser o tamanho da nossa vergonha por permitirmos que isso aconteça.
Para que nós enquanto sociedade nos curemos dessa doença, precisaremos reverter o processo que nos trouxe até aqui. Leva tempo até estabelecermos uma outra cultura, a cultura da tolerância.
Voltando ao Milton Nascimento, da mesma forma que quem cala sobre teu corpo, consente na sua morte, “quem grita vive contigo”.
Afonso Pola (afonsopola@uol.com.br) é sociólogo e professor.