O Café com Mogi News desta terça-feira (10) traz o fundador e diretor executivo da ONG Missão Intensidade, Rodrigo de Souza. Ele conta sobre sua trajetória, a vinda da família da zona rural de Minas Gerais para o bairro Vila Matilde, na zona leste da capital, marcada pela violência doméstica e a precariedade de condições em que vivia sua família, além do racismo enfrentado cotidianamente. Em 2002, ele veio para Mogi das Cruzes, onde conheceu uma nova realidade, que o levou a cursar Educação Física, e depois a pós-graduação na Unifesp. 

Em 2011, trabalhando no bairro Novo Horizonte, na periferia da cidade, o entrevistado conta que sentiu a vontade  de fazer alguma coisa e cuidar das crianças daquele local, o primeiro passo para a criação da Missão Intensidade. O trabalho começou oficialmente em 28 de fevereiro de 2015, e hoje eles nas redes sociais, têm conta jurídica, documentação, e iniciam um processo de crescimento. A ONG atende 350 pessoas, entre crianças, adolescentes e jovens de 4 a 29 anos. 

Saiba mais nesta entrevista especial com apoio da Padaria Tita. 

Café com Mogi News: Conte um pouco da sua história. Desde quando você começou a se interessar em ajudar o próximo e em projetos sociais?
 Rodrigo de Souza:
Isso passa pela minha história, como diz você. A família da minha mãe sai do interior de Minas Gerais na década de 70, e vem para São Paulo. Sai da zona rural de Minas Gerais e vem para São Paulo, para a Zona Leste, na Vila Matilde. Ela vem com os pais, muito nova, com uns 14 anos, e chegando em São Paulo minha mãe conhece meu pai. Ele se interessa por ela, quer ter relações sexuais com uma menina caipira, virgem, da zona rural de Minas Gerais, que fica assustada e não quer. Então, ele leva ela para um bambuzal e espanca para ter relação sexuais e isso acaba se tornando normal para ela.
 
 

Por mais estranho que pareça dizer isso, mas até hoje existem mulheres que vivem em situações parecidas, imagina na década de 70?! Ela era estuprada e vivia um relacionamento assim, e se casou com o meu pai, nisso nasce a minha irmã. O primeiro filho deles, eu, só que ela vive um casamento de violência doméstica, e ela vai vivendo isso por vários anos.
 
 Depois de muito apanhar, ela resolve se separar e voltar para Minas Gerais. Eu tinha menos de dois anos de idade, a minha irmã era um pouco maior, e quando chega em Minas Gerais, ela conhece uma outra pessoa, que é o meu padrasto, meu pai que me criou mesmo. Ele era viúvo, tinha quatro filhos, e ela separada tinha dois. Como se não bastasse eles acabam tendo mais uma e a gente cresce em uma família de sete filhos.
 
 Uma pessoa que não era alcoólatra se torna alcoólatra e mais violenta que o primeiro marido. O meu pai (padrasto) passa a agredir a minha mãe e eu presencio ele quebrar dentes da boca dela na porrada. Eu cresci vendo meu pai espancar a minha mãe, só que pior que a violência doméstica é você morar mal. Imagina nove pessoas morando em um cômodo com banheiro, chão de terra batido.
 
 Nosso banheiro não tinha vaso sanitário, era um cano, você fazia as necessidades ali no cano, jogava água e colocava uma lata para o cheiro não voltar. Mas pior que o meu pai batendo na mãe, que morar mal, é você não ter o que comer. A gente às vezes não tinha almoço, não tinha janta. A minha mãe fazia água doce de manhã para a gente. Ela fervia água com açúcar e falava: 'toma, porque não é legal ir para a escola com barriga fria'.
 Pior que ver o pai batendo na mãe, que morar mal, que não ter o que comer, é não ter autoestima. Eu não tinha autoestima alguma. Eu era uma criança que ia dormir, cobria a cabeça e ficava uns 30 minutos chorando. Recordo-me de várias vezes adormecer chorando. Eu estava na escola com 9 anos de idade e eu saía da sala de aula para ir ao banheiro chorar.
 
 Tem três coisas que me faziam chorar, o primeiro era o fato de ser preto. Ser preto há 35 anos, no interior de Minas Gerais, e as pessoas te chamando de 'macaco', 'tiziu', 'cabelo de Bombril', 'asfalto' e tudo de uma maneira muito normal para eles. Há 35 anos, você não tinha pais empoderados, psicopedagogos, uma internet que está todo o tempo informando. Era muito claro para mim, na minha observação de mundo, que ser preto era ruim.
 
 Outra coisa que me fazia chorar era a disfuncionalidade familiar. A gente morava no alto de um barranco, quando o meu pai vinha lá debaixo, subindo a escada cambaleando. Ele chegava bêbado, e eu sabia que ia começar o quebra-quebra, gritaria. Aquilo ali já me deixava mal, então essa bagunça em casa, de pai quebrando as coisas, batendo, gritando, me fazia muito mal.
 
 Por fim, a terceira coisa que me fazia chorar era a pobreza, porque era todo mundo pobre no meu bairro, mas na casa do meu amigo tinha comida, na minha não. Eu pensava que alguma coisa estava errada. Então, essas três situações me ofendiam muito, e eu fui vivendo com isso. Se você não tem autoconfiança você não se expõe, porque você não quer ser ridicularizado.
 
 Eu fui crescendo uma criança, um adolescente, um jovem muito introspectivo, no meu mundo, e meus irmãos iam saindo muito cedo de casa por causa do ambiente. Com 14, 15 anos de idade, eles iam saindo de casa e vindo para São Paulo, porque a gente tinha uma raiz familiar aqui. Em 2002, eu vim para Mogi. Já tinha três irmãs e um irmão que moravam aqui, nessa época, e chegando aqui eu tive dois divisores de água muito importantes.
 
 Quando cheguei na Rodoviária do Tietê, estilo o Will Smith em 'Um Maluco do Pedaço' chegando na cidade do tio Phill, aqueles prédios, aquelas coisas todas assim, falei: 'cara, que legal, que negócio diferente'. Em Mogi, a primeira coisa que mexeu muito comigo foi que eu comecei a ver uns ‘negrões’ dando aula de faculdade, donos de empresa, andando com os carros bacanas. Tinha o Buxixo tocando samba, os ‘negrões’ marrentos, pensei 'aqui é diferente para os pretos'.
 
 Nisso entra um negócio que é muito legal, a representatividade. Você ver alguém que parece com você e que está bem, porque em Minas eu cresci olhando para o lado e o meu pessoal adulto estava nas drogas, no alcoolismo, fazendo vários filhos com diversas mulheres diferentes, então eu não conseguia projetar um futuro bacana para mim, porque todo mundo que era adulto, ou a maioria dos adultos a minha volta, estava em situações que não me levavam para um lugar positivo.
 
 O segundo divisor de águas, eu fui trabalhar depois de uns seis meses em Mogi, porque eu fui morar na Vila Natal, uma das periferias mais tradicionais daqui, e eu fui viver o que me apresentaram. Eu passei seis meses em um mundo meio obscuro, mas depois disso eu fui trabalhar no Clube de Campo de Mogi das Cruzes. Eu comecei pela primeira vez a me relacionar com pessoas de nível socioeconômico e sociocultural diferente do meu. Isso me acrescentou muito, eu comecei a ver outras pessoas, que falam de outras coisas, culturas, mundos, e aquele ambiente me inspirou a fazer Educação Física.
 
 Eu trabalhava no clube, era zelador da academia, apertava parafuso, trocava cabo de aço, organizava e eu via o pessoal dando aula. Eu vi um estagiário falando para um Promotor de Justiça o que ele tinha que fazer, e pensava: 'legal, o pessoal está mandando no outro, é o que eu quero fazer'.
 
 Eu fiz Educação Física na UMC, me formei e fui fazer pós-graduação na Unifesp, no Hospital São Paulo. Sou casado hoje com a Jennifer, com uma mulher linda, e eu falo que é bem legal, porque no processo de adolescência, um dos grandes lances que a gente tem é a paquera. Para o adolescente, para o jovem, a paquera é a razão de viver, e as meninas não queriam paquerar o menino negro há 30, 35 anos atrás.
 
 Hoje, está todo mundo querendo um pretinho para chamar de seu, mas há 35 anos atrás você não pegava ninguém. Eu tenho cinco irmãs. Eu lembro que as minhas irmãs colocavam toalha no cabelo, porque o estereótipo de beleza era o cabelo liso, a menina branca, e para o moleque é a mesma coisa também. Então os meninos zoavam o moleque que era preto, e as meninas não queriam paquerar o negrinho. Então, me casei com uma mulher linda, a Jennifer; tenho dois filhos Benício, de 4 anos, e Benjamin, de 2. Fui passar a lua de mel em Santiago (Chile), andar na Cordilheira dos Andes, na neve. Comprei meu carro e comprei a minha casa.
 
 Eu costumo falar que eu tenho um banho quente. Quando a gente era pequeno, na minha infância, a gente tinha que catar tijolo, achar pedaço de madeira no mato e fazer fogo. A gente pegava uma lata de tinta velha, colocava água e esquentava. Depois de esquentar a água, a gente colocava na bacia, levava para o banheiro e temperava com água fria para equilibrar. Pegávamos a caneca, jogávamos a água, nos ensaboávamos, e depois jogávamos água de novo para tirar. Isso é o que a gente chama de banho a cavalo. E eu tenho um banho quente hoje.
 
 Então, diante disso tudo, eu entendi que eu tinha e que eu precisava fazer algo para essas crianças e jovens que passaram, e até hoje passam por situações que eu passei lá atrás. Você me perguntou: 'Como você entendeu que tinha que fazer isso?', e é uma pergunta muito muito bacana, porque tudo o que você faz hoje, se você estiver fazendo o que você nasceu para fazer, provavelmente tem a ver com a sua infância e adolescência. As coisas que você brincava, os programas que você assistia na televisão, as coisas que chamavam a sua atenção quando você era pequena, te levaram à profissão, que às vezes você está exercendo hoje.
 
 Eu me recordo, por exemplo, que a gente vivia entre a fartura e a escassez. Tinha domingo que não tinha o que comer, e tinha outro domingo que juntávamos a família, os tios, e íamos fazer churrasco. E eu lembro que nessas festas de família mineira, preocupavam-se com a comida, com a bebida alcoólica dos adultos, mas não se preocupavam, por exemplo, com a bebida das crianças. E, eu lembro que com 12, 13 anos eu já trabalhava. Então eu ia no mercado e comprava “Ki-suco”, suquinho em pó, ou comprava refrigerante, e eu falava: 'Vou levar, porque eu sei que vão estar meus irmãos e os meus primos'. Então, você já começa a ver que eu tinha uma consciência, uma preocupação com a criança, isso eu com 12 anos.
 
 Eu lembro que no início dos anos 90, tinha um apelo muito forte sobre a questão da fome na África. Você ligava a televisão e falava muito da questão da fome na África, pois estava muito na TV. Eu me lembro que eu, em casa vendo a TV com o menino da África passando fome, estava passando fome em casa, sem nada para comer, e chorando porque o menino da África não tinha nada para comer lá. É muito louco isso. Essas questões já estavam em mim, e em um determinado momento, elas afloraram e falaram: 'mas a gente precisa fazer alguma coisa'. Eu acredito que realmente eu nasci com um dom, com uma missão, isso estava em mim e precisava acontecer em algum momento.


 
 CMN: Muito bacana essa história, porque é isso que você falou: reflete. Aquilo que você viveu na sua infância reflete no que você é hoje, no que você executa hoje. Eu queria saber, quais são os trabalhos que a Missão Intensidade executa hoje?
 
 Rodrigo:
A gente começou o trabalho em 2015, e em 2011, eu estava vivendo uma crise pessoal muito forte. Eu estava entre: 'Vou ganhar dinheiro e ser professor universitário, eu vou abrir minha academia ou vou ser missionário no sertão nordestino, e fazer trabalho com as crianças no sertão do Nordeste?'

Isso era muito caro para mim e a partir disso, eu não conseguia fazer mais nada, porque o propósito me puxava, a missão me puxava. Você está querendo ir para o outro lado, enquanto tem algo na sua vida que te chama, que grita dentro de você, que é a missão, o propósito. E se você vai para o outro lado, você não vai ter paz, e eu não tinha essa paz, porque eu sabia que eu precisava fazer, mas eu estava lutando contra isso.

E aí, em 2011, eu fui dar aula na periferia de Mogi das Cruzes, no Novo Horizonte. Vivendo essa crise: 'Eu preciso fazer alguma coisa, eu preciso ir para o sertão, eu preciso cuidar das crianças'. Entre 2011 e 2012, eu fui estudando, fazendo algumas coisas, tentando entender alguns cenários. Eu estava gritando por dentro: 'Você precisa fazer alguma coisa'.

Em 2014, uma mãe entra na escola. Ela vai na mesa da diretora, eu estava próximo dali, quando ela bate na mesa, olha para a diretora e fala: 'Olha eu não tenho nada para comer em casa. Estou indo trabalhar na zona, e não adianta me denunciar'. Então, a mãe falou que estava indo se prostituir para comprar comida para os seus filhos, e dois dos filhos dela, eram meus alunos.

Aquilo ali mexeu comigo, eu comecei a chorar no pátio da escola. Eu virei para uma faxineira, que era moradora do bairro e trabalhava na escola e falei para ela: 'Vai lá cuidar, porque ela (mãe) falou que ia pagar'. Eu acho que ela não ia pagar nada, mas estava blefando. Eu falei para a faxineira: 'Vai lá e cuida dessas crianças, vai receber um dinheiro, você mora aqui'. Essa faxineira olhou para mim e falou assim: 'Você não sabe de nada da vida dessas crianças, você não sabe nem onde elas moram'.

Isso para mim, foi uma fala divina. Eu senti e falei: 'Eu preciso saber'. Falei com ela (faxineira) para me levar lá. Passaram-se dois dias e a gente foi lá. Aí eu descobri que eu fazia (o trajeto) casa-trabalho, lidava com as demandas do bairro dentro da escola, mas não conhecia a realidade do entorno, e foi quando eu encontrei esse lugar, que era uma favela dentro da periferia, um buraco com 80 famílias morando dentro, e grande parte dos meus alunos moravam ali numa situação desumana.

Ali, eu fui tomado por alguns sentimentos. Primeiro, o sentimento de inconformismo, Mogi das Cruzes fica dentro do Estado de São Paulo. Mogi é uma cidade estruturada, rica; São Paulo é o estado mais rico da federação, e pessoas vivendo naquela situação. Por mais que você saiba que existe, quando você coloca os seus pés é outra coisa. Tem uma frase do Frei Beto, que é muito bacana, ele fala que 'a sua cabeça pensa a partir de onde os seus pés pisam'.

O segundo sentimento é o de compaixão, de você olhar para o ser humano e falar assim: 'Aqui, está alguém da minha raça, da mesma fonte que eu, que veio do mesmo lugar que eu. Eu consigo ter empatia por você, eu consigo sentir as suas emoções, eu consigo ter ideia da sua fome, da sua dor, das suas expectativas, por mais que eu ame um animal ou um bichinho. Eu não consigo entender a profundidade de um sentimento de um animal, mas a sua eu consigo'.

E o terceiro sentimento é o de identificação, porque eu cresci numa realidade parecida. Então, quando eu vi os negrinhos correndo ali, com 10, 11 anos, eu só falei: 'Esse aí sou eu há 30, 35 anos'. Quando eu vi uma mãe chegando cansada, tinha saído 6 horas da manhã e chegando 7 horas da noite, de ter ido fazer faxina, muitas vezes na casa de um patrão que explorou e abusou dela. Essa mãe está chegando cansada, com uma cara de cansaço e sofrimento, e ainda precisando de uma cesta básica. Eu falei: 'Essa aí é a minha mãe há 30, 35 anos'.

Eu saí dali, juntei um grupo de amigos e falei: 'Olha, a realidade é essa, a gente precisa fazer alguma coisa'. Assim, em 28 de fevereiro de 2015, oficialmente a gente começa o trabalho, nos dois primeiros anos, muito intenso, com muita entrega.

Na virada dos quatro primeiros anos, a gente fazia um evento que era muito legal, que era uma ceia de Natal comunitária. Imagine você, dia 24 de dezembro, quando todo mundo vai cuidar de si e dos seus, a gente ia para a favela, levava voluntários. A comunidade arrecadava muita comida: frango, peru, fruta, comida boa. Nós passávamos o dia cozinhando, à noite a gente parava para comer e festejar. Dia 25, 5 horas da manhã, a gente limpava o espaço, dividia comida. Era uma coisa linda para mim; um dos melhores dias da minha vida era essa ceia de Natal. Imagine traficante, prostituta, pastor, criança, macumbeiro, o que você imaginar tinha lá. Cento e oitenta pessoas, e a gente fazia isso.

Só que depois de dois anos a gente estava extremamente cansado. Então falamos: 'Ou a gente para, ou a gente continua o que a gente está fazendo, que é muito legítimo; mas a gente está dando muita coisa aqui e a galera começa a entender que você está dando muita coisa e vão tirando até secar. Ou, a gente faz isso aqui de um projeto social sustentável, de transformação'.

Então, fomos por esse caminho, e aí que organizamos redes sociais, conta jurídica, documentação, e a gente começou um processo de crescimento. Tem sido muito legal. A Missão Intensidade tem crescido muito, graças a Deus. Agora, a gente tá chegando a quase nove anos de atuação. Hoje, nós trabalhamos com esporte, cultura, educação tecnológica e qualificação profissional, com crianças, adolescentes e jovens de quatro a 29 anos. Hoje, atendemos 350 pessoas nessas áreas.

Trabalhamos tanto nos pilares de cultura, esporte, educação tecnológica, que é uma ferramenta muito forte hoje, e na parte também de qualificação profissional com jovens.

CMN: Você disse que trabalha com esporte e cultura. Vocês têm algum tipo de escolinha de esporte, e em relação à cultura, oferecem aulas de dança, ou alguma coisa do tipo?
 Rodrigo:
Sim. Hoje, por exemplo, no esporte, nosso carro chefe é o futsal. Hoje, nós temos 100 alunos do futsal, entre meninos e meninas. Na cultura, trabalhamos com o ballet clássico. 
 
Algumas coisas importantes. Primeiro: a gente não só solta a bola lá, dá um lanche para a molecada e fala: 'Joga!'. Não, a gente realmente está observando se tem talento ali, para conectar esses meninos com o futebol profissional. Estamos realmente tentando fazer com que não seja simplesmente um entretenimento, mas que o futebol seja uma ferramenta de educação, e também de formação técnica.
 
Hoje, são 45 meninas no ballet clássico, então a gente oferece uma estrutura que as maiores escolas de dança de Mogi e região oferecem. Colocamos barra, espelho, roupa completa para elas, a gente leva para um festival de dança, porque queremos formar bailarinas. O que a gente vende para as mães e responsáveis dessas meninas é 'olha, a formação é de nove anos, se você quiser e tiver assiduidade e responsabilidade, a gente vai te entregar uma bailarina formada, e essa menina vai trabalhar com dança ou vai ser uma professora de balé ou, no muito, vai ser uma cidadã bem formada, inserida no mercado de trabalho, na faculdade, na questão educacional'.
 
Quando eu digo vende essa proposta para o pai, para a mãe, que se ele quiser e se ele tivesse a responsabilidade de levar, acompanhar, seguir os processos, a gente vai entregar para ele uma jovem muito bem informada e dentro disso, qual que é a nossa grande chave? Hoje, dos nossos 350 atendidos, todos eles passam por educação tecnológica e por desenvolvimento socioemocional, com psicólogas ou psicopedagogos.

A menina do balé chega de manhã, toma um café. Uma turma está no balé clássico, outra turma está na tecnologia fazendo programação e a outra está com a psicopedagoga fazendo desenvolvimento socioemocional. Os meninos do futebol chegam, tomam café, o Sub-8 está na quadra fazendo futebol, o Sub-10 está na tecnologia fazendo programação e o Sub-12 está fazendo desenvolvimento socioemocional com a psicóloga.

Os meninos da qualificação profissional têm, hoje, aula de tecnologia, ferramentas digitais para o mercado de trabalho, um dia de uma trilha só de desenvolvimento de socioemocional, gestão de conflito, inteligência emocional, relacionamento interpessoal. É uma trilha que vem da Gerando Falcões, e que nós somos parceiros hoje, e cada um dos nossos jovens tem cinco meses de curso. Eles têm um mentor de carreira e um mentor de inteligência emocional que faz dez encontros cada, no modelo online.
 
 A gente entendeu que se não conseguirmos trabalhar a saúde emocional da nossa comunidade, a gente não vai mudar as coisas, por que você pega uma menina que chega para a gente com 15, 16 anos para fazer qualificação profissional, que foi abusada pelo avô, pelo tio durante 10 anos. Como essa menina vai se sujeitar a uma autoridade masculina? O homem que estava na vida dela, referência de masculinidade, a abusou.
 
 O menino chega para a gente com 15, 16 anos, ele teve cinco padrastos já. Quatro já judiaram dele. Como ele vai se relacionar bem no ambiente de trabalho com o patrão, com o chefe? Se a gente não conseguir trabalhar essa recuperação da saúde emocional deles e preservar a saúde dos meninos, das meninas com quatro, cinco, seis anos, a gente não vai muito longe.
 
 Nisso entra a questão da tecnologia, se a gente não reduzir a desigualdade digital, a gente não vai reduzir a desigualdade social. Se o mundo é tech, a favela precisa ser tech. Estamos trabalhando essa imersão tecnológica e essa questão do desenvolvimento socioemocional para fortalecer a inteligência emocional da comunidade. Esses são dois pilares muito fortes hoje no nosso trabalho.
 
 


 CMN: Um conversa com o outro. Você disse que os pais levam as crianças para a sede da Missão e vocês cobram isso dos pais. Quando o pai ou a mãe não está com a criança, acaba se tornando um desafio? Quais são os principais desafios que a Missão Intensidade enfrenta hoje?
 
 Rodrigo:
Ótima pergunta, porque esse é um dos desafios que a Missão Intensidade tem. A gente percebe, é muito claro, muito nítido, que quando tem uma participação da família esse aluno ele já está na frente. Quando temos um aluno que a família acompanha e não só no projeto, na própria escola, na vida, e é muito engraçado porque não se trata necessariamente de um formato de família, mas de uma forma que é ser família.
 
 Eu tenho, por exemplo, meninos que moram com a avó e são muitos responsáveis, porque a vó está no pé perguntando com quem está, horário que chega, com quem foi, aonde está, que vai lá na quadra para ver se o menino está jogando, com quem está jogando, o que ele está fazendo. A gente chama isso de responsabilidade familiar, não importa a formação, de que forma a família é formada, e sim se tem responsabilidade familiar, se você está acompanhando.
 
 Fazer com que os pais participem da vida dos filhos, principalmente dentro da Missão Intensidade, chamando para reuniões, para acompanhar, isso é extremamente importante. Eu digo que se a gente tivesse famílias sólidas nas periferias e favelas, talvez a gente não precisaria de projetos sociais, porque começa na família. Nós entendemos que a participação da família é muito importante e o que que acontece? Primeiro temos um processo histórico, você vai chegar em um ponto que vai ter famílias desestruturadas, que geram jovens numa situação desestruturada e começam a reproduzir isso.
 
 Então, você pega uma menina de 15 anos que engravida, tem filho e é uma criança cuidando de outra. Em algum momento essa menina precisa trabalhar e o filho vai crescer sozinho, e a mãe tem que optar pelo o quê? Ou trabalha muito para dar uma vida básica aos filhos e eles se criam sozinhos, na rua, ou não trabalha e vive mal, pior ainda para ficar perto dos filhos.
 
 Tem uma dinâmica que a gente trabalha hoje: imagine que a periferia é um buraco, que a favela é um buraco, e as pessoas nascem dentro dele. Ali dentro, tem muita coisa boa, cultura musical do samba, rap, coisas que precisam ser preservadas, até mesmo a questão gastronômica, mas de maneira geral, a gente está falando do quê? Drogas, alcoolismo, gravidez na adolescência, e isso vai passando de pai para filho, e as pessoas vão achando que isso é normal, porque elas nasceram nessa realidade, vão vendo isso e não conseguem enxergar outra coisa.
 
 Em algum momento, uma pessoa dentro desse buraco, dentro dessa cultura, ousa olhar para cima e ela vê que tem uma saída, uma luz, e se questiona o que tem ali. Ela fala para o pai, mãe, família: 'eu quero sair, eu quero fazer uma faculdade'. A mãe pensa: 'fazer faculdade? Não, você vai para a faxina comigo, ninguém fez faculdade aqui em casa, você vai fazer faculdade para quê?'.
 
 O moleque fala: 'não, eu vou na Missão Intensidade fazer um curso de informática', e respondem: 'curso de informática? Não, você vai para a obra comigo, trabalhar, pega sua enxada, ninguém fez curso aqui'. Então, o primeiro desafio dessa pessoa é romper com a cultura, aos trancos e barrancos, ela rompe com a cultura e o pessoal começa a chamar de 'diferentão', 'diferentona', 'metido'. Após o rompimento, ela tem um desafio de sair do buraco.
 
 Depois que ela sai do buraco, ela tem um desafio de encarar uma nova cultura, que é a metrópole, a faculdade, a Avenida Paulista. Ela vai desviando, crescendo, tomando pancada e ela chega, no lugar que a gente costuma dizer que venceu na vida. A pessoa conquista saúde emocional, estabilidade financeira, comprou o carro, a casa, é mais ou menos a minha história que eu contei para vocês, e esse momento é extremamente crucial. Ela vai voltar, olhar para o buraco e normalmente tem duas opções: ela olha para o buraco e fala: 'tudo vagabundo preguiçoso, está aí porque quer, cresceu junto comigo' e vira as costas para viver, ou ela entra no buraco, leva tudo e todos para quebrar o ciclo de pobreza, começa a persuadir as pessoas e fala: "vamos sair daqui, há uma outra realidade, uma outra vida, você pode ser jovem aprendiz em uma multinacional com 15 anos, você não precisa ficar grávida na adolescência'.
 
 'Você não precisa roubar um celular e parar na Fundação Casa com 15 anos, velho, tem um trabalho para você, tem um curso bacana, você pode, ninguém falou para você que você pode, mas você pode, vamos'. Nisso, essas pessoas começam a sair e quando não começam a sair, você pega elas no colo e fala: 'vamos sair que eu vou te tirar daqui'. Você carrega elas e coloca lá fora até começarem a andar sozinha. Quando você sai do buraco, você joga a corda e fala 'última chance, sobe, vem'.

 Veja mais na segunda parte da entrevista no YouTube do Portal News e viste o site https://missaointensidade.org.br/ e pelo WhatsApp (11) 97657-9996.