O episódio do Café com Mogi News desta terça-feira traz a professora Cleonice Maria Joaquim, membro do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compir) de Mogi das Cruzes e da Pastoral Afro. Neste mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de novembro, ela conta sua história e o trabalho que realiza, atuando no combate ao racismo e pela valorização da população negra.
Recentemente ela participou do 10º Congresso de Entidades Negras Católicas (Conenc), realizado em Salvador (BA) e, segundo ela, pode sentir, andando nas ruas de pedra do Pelourinho, o que foi a escravidão. Ela também citou o início do movimento negro na região. "Nessa década de 70, já havia movimentos negros, principalmente nos Estados Unidos, na África, e começou um movimento aqui no Brasil, principalmente em São Paulo, e nós começamos a nos reunir em praças, na época na praça da Catedral. Nós nos reuníamos para conversar sobre essas coisas que nos incomodavam, porque nós não entendíamos o porquê dessa diferenciação".
Conheça mais sobre a trajetória de Cleonice e sua luta contra o racismo e pela valorização da população negra nesta entrevista especial do Café com Mogi News, em parceria com a Padaria Tita.
Café com Mogi News: Novembro é o mês da igualdade racial, quando se comemora o Dia da Consciência Negra, e queremos começar com a sua jornada. Gostaria que você contasse um pouco da sua história e como foi chegar no Conselho de Igualdade Racial aqui de Mogi.
Cleonice Maria Joaquim: Então, minha mãe sempre foi empregada doméstica, uma pessoa que sempre trabalhou na comunidade da igreja, ajudando a todos, e meu pai foi funcionário da antiga Cosim Mogi. Nas horas vagas, ele fazia trabalhos como pedreiro. Nós viemos de família humilde, crescemos, mas meus pais sempre trouxeram para a gente muitos livros, porque eles sempre falavam assim: “É importante ler”. Eu sou, praticamente autodidata, porque quando entrei na primeira série com 7 anos, eu entrei alfabetizada porque via meus irmãos lendo, e eu queria ler,. Na época a antiga cartilha “Caminho Suave”, famosa.
E na escola, a gente sabe como hoje ainda acontece, hoje falasse bullying, na minha época não tinha nada disso. E a gente acabava levando tudo na brincadeira, mas tinha essa coisa de ser chamado de negro, mas a gente superou. Nessa caminhada nós fomos crescendo, e na juventude foi quando eu tomei mais consciência dessa diferenciação, porque na infância você sente, mas não entende, na juventude nós começamos a perceber.
Na época aqui em Mogi, tinha uma diferenciação dos bailes, então assim, tinha um baile que era mais frequentado pelo povo negro, e havia os bailes que eram mais frequentados pela elite. Na época a gente frequentava muito a Associação dos Motoristas e um salão chamado Itapety, que era onde tocavam as músicas black, James Brown, Michael Jackson, essas coisas, que era o que a gente gostava, e tinha os bailes Canguru, os salões que eram mais elitizados, e que às vezes a gente ia e não se sentia tão bem, porque não tinha esse acolhimento, talvez por causa da cor.
Começamos a perceber que nós éramos assim, entre aspas, perseguidos, na época pelo Juizado de Menor, porque quando estávamos no baile, por exemplo, da Canguru, nós saíamos do baile e tudo bem, quando nós saíamos ao baile da Itapety, sempre tinham os comandos policiais que acompanhava até o nosso ônibus. Nessa década de 70, já havia movimentos negros, principalmente nos Estados Unidos, na África, e começou um movimento aqui no Brasil, principalmente em São Paulo, e nós começamos a nos reunir em praças, na época na praça da Catedral. Nós nos reuníamos para conversar sobre essas coisas que nos incomodavam, porque nós não entendíamos o porquê dessa diferenciação. E aí começamos a mostrar um pouquinho da nossa cultura na praça, na época chamávamos isso de “Encontro de Blacks”. Então a gente levava música, que eram as que a gente gostava, o Samba, o Soul, com muita influência dos Estados Unidos, do Michael Jackson, Jackson Five, essas coisas, e dentro desses encontros discutíamos nossas inquietações. Então na verdade, eu faço parte do movimento negro desde a adolescência. Depois, na escola, entrei para o magistério, e era uma outra coisa que me incomodava porque na minha sala de aula éramos eu e um aluno, um único aluno homem, só nós dois negros.
CMN: Uma sala de quantos alunos mais ou menos?
Cleonice: Uma sala de uns 35 alunos mais ou menos. Só dois negros.
CMN: Não dá nem 5%. E aí você olha a composição da sociedade brasileira os negros são maioria, mais da metade da população.
Cleonice: E assim, a coisa é tão complexa, que eu cheguei a ouvir de uma professora: “Você não pensa em mudar de profissão”; falei: “Não, magistério é meu sonho”, e ela falou: “Ah, mas eu acho que você não vai conseguir trabalhar como professora”.
CMN: Nos últimos 30 anos a gente viu um movimento de integração na cultura, na música, no cinema. A gente começa a ter uma valorização, mas na vida real, no dia a dia, muitos desses casos continuam acontecendo? Como ativista, você acompanha esses casos aqui no dia a dia, chegam denúncias de racismo aqui do Alto Tietê, em Mogi das Cruzes, Suzano, Itaquá?
Cleonice: Há todo o momento a gente recebe denúncias, a gente tem conhecimento de casos. Há pouco tempo eu passei por isso com minha neta. Eu tenho uma neta que vai fazer seis anos agora, e dentro de uma loja aqui em Mogi, ela com a mãe. A mãe fazendo as compras, pagando a conta, e ela no corredor e passou uma senhora: “Ah, dá licença”, (e a neta:) “pois não, pode passar fica a vontade”. A moça virou e falou assim: “Nossa, tão educadinha, mas que pena esse cabelo tão feio”. Porque ela usa o cabelo como eu, a gente usa o cabelo natural, cabelo black, e a gente coloca um monte de enfeite e tudo. Ela ficou estagnada, sem reação.
CMN: Você não acredita que está ouvindo isso, em 2022.
Cleonice: Sim. Na semana passada, assim que cheguei de viagem, eu recebi uma denúncia de uma pessoa que procurou, indicada pelo pessoal da igreja dizendo o que o filho estava sofrendo e a questão era nas redes sociais. E foi o que eu falei para ela, eu não tenho muito conhecimento de como atuar nessa área das redes sociais, de internet, mas o Conselho está aí para isso, para denunciar, para a gente investigar, averiguar esses casos.
CMN: E caso alguns dos nossos espectadores, nossos ouvintes, passem por uma situação ou conheçam alguém que está passando por uma situação assim, como ele tem que proceder?
Cleonice: Hoje a gente orienta assim, com a facilidade que se tem hoje de estar sempre com o celular na mão, é produzir provas. A primeira coisa você tem que produzir provas, procurar testemunha. Se puder gravar o fato, grave e vá para uma delegacia, faça o boletim de ocorrência. Caso não seja atendido, procure o Conselho, procure um conselheiro, porque a gente tem várias formas de encaminhar tudo isso. Nós, mesmo dentro da igreja, tem o pessoal da Pastoral Afro, que está aí combatendo essas situações, esse preconceito, esse racismo, que também é uma forma de você chegar a fazer uma denúncia sobre isso, porque hoje não dá para admitir mais essas questões.
CMN: A senhora falou sobre do começo nos anos 80, dos encontros black na praça da Catedral, e esses encontros acabaram sendo um ponto de partida de várias organizações que temos na região, cito a Unegro, Afrontarte, e outros coletivos não só em Mogi, mas em várias cidades da região. E a gente queria saber como é a articulação entre eles, com o Conselho da Igualdade Racial, como é esse trabalho contínuo?
Cleonice: Então, o Conselho da Igualdade Racial e Unegro, eles andam bem próximos, sempre tem essas articulações. Os outros movimentos acabam se integrando também porque acaba que um membro da Unegro também é um membro do Conselho, também é um membro da pastoral, porque as lideranças negras, infelizmente, ainda são poucas. O próprio negro, às vezes, não quer se envolver, porque, apesar de a sociedade falar que é "mimimi", são questões que mexem com o que há de mais profundo do ser humano, isso machuca, e você mexer com essas questões é você voltar ao passado e sentir toda a dor de um tempo de escravidão.
Posso até colocar para você um pouquinho da minha experiência em Salvador agora. Era um lugar que eu não conhecia, e eu falava a todo o momento: “Gente eu consigo sentir”. Eu podia sentir andando nas ruas de pedra, ali do Pelourinho de Salvador, o que foi a escravidão, porque assim, são pedras imensas que fizeram aquele calçamento, e quem trabalhou? E como foi esse trabalho? Porque as pedras não chegaram ali do nada. Foi um trabalho sofrido. Aí você olha e fala assim: “Nossa, pode ter um antepassado meu trabalhado aqui”, e hoje estou pisando aqui sobre esse chão, achando tudo lindo e maravilhoso, e é lindo e maravilhoso, mas a gente não pode negar a história. Eu falo que nós somos seres históricos, todos nós temos uma história. Se você for fazer uma árvore genealógica, pode ser que na sua história tenha tido alguém oriundo da África, alguém que tenha vindo desse período de escravidão, alguém que tenha sofrido as consequências disso. Então falar hoje: “Ah, tudo isso é mimimi”, não pode ser dito como "mimimi".
CMN: A senhora falou um pouco de Salvador, recentemente teve o 10º congresso de Entidades Negras Católicas, o Conenc. Gostaria que você falasse um pouco mais sobre esse Congresso, a importância dele, os encaminhamentos e o que pode ser trazido para o Alto Tietê.
Cleonice: Esse Congresso visa uma maior articulação entre as entidades negras católicas. É justamente porque ainda, mesmo dentro da Igreja, o povo negro teve uma dificuldade de estar inserido nesse contexto, tanto que em Salvador. Eu agora, tomei conhecimento participando do Congresso, porque eu já tinha ouvido falar, da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, mas eu não sabia o contexto dessa igreja, porque na verdade esse nome foi dado porque na época, o povo negro não poderia frequentar a chamada igreja da elite, igreja dos senhores do engenho.
CMN: Havia um apartheid religioso já naquela época.
Cleonice: Sim! E aí os próprios negros construíram essa igreja, dedicada à Nossa Senhora do Rosário, e colocaram “dos Homens Pretos”, porque eram só os negros que frequentavam. E esse congresso tinha o intuito de juntar as irmandades, porque assim, muitas vezes as Irmandades de São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, elas caminham por si só. E a Pastoral Afro tem o objetivo de unir todos esses movimentos num movimento só. São como as congadas, trazer a congada para a pertença da igreja, porque eles são católicos como nós, e porque a congada só atua fora da igreja? Então a intenção desse Congresso é discutir essas pequenas coisas, esse assuntos, articular essas entidades todas.
CMN: A senhora tem toda uma experiência de vida, uma trajetória sobre preconceito, aceitação, autoaceitação, e de lá para cá, desde o início, desde os bailinhos, desde o Canguru e até hoje, melhoramos, pioramos, ou continuamos na mesma?
Cleonice: Melhoramos, nós temos assim, alguns ganhos. Nossa luta não tem sido fácil, mas não tem sido em vão também. Com essas articulações de todos os movimentos nós já conseguimos muita coisa, uma delas foi a criação da Secretaria Nacional de Cultura, de todas as desigualdades, a SNPIR, e dela que advém o conselho municipal, porque tudo começa em Brasília. Nós tivemos ganhos com algumas leis, Lei 10.000, que obriga o ensino da história do negro da África no Brasil, temos a Lei das Cotas, que eu acho importantíssma. Quando foi lançado a Lei das Cotas, eu fui contra, mas depois refletindo, eu hoje sou totalmente a favor, porque é uma oportunidade que se dá para a gente poder fazer uma universidade com mais facilidade. Eu, por exemplo, levei 10 anos para fazer uma faculdade de inglês, mas porque eu estudava em uma instituição particular, aí eu pagava um tempo, as coisas apertavam. Eu fiz faculdade casada e com dois filhos e trabalhando, aí eu parava, ficava seis, sete meses sem estudar e pagando e renegociando as contas, voltava, fazia um pouco e parava.
CMN: Quem quiser participar, engajar, ajudar, conhecer mais ou aprender, como é que ela faz?
Cleonice: Se você quiser participar dentro da Pastoral Afro Brasileira, agora nós estamos sediados e acolhidos pela Paróquia Nossa Senhora Aparecida de São Roque (no distrito de Braz Cubas, em Mogi das Cruzes). Nós temos a paróquia do Padre Dido, que ele é o referencial da Pastoral Afro aqui em Mogi, mas nas outras cidades todas, Suzano, Itaquá a Pastoral Afro tem um trabalho muito forte. Poá, Itaquá, todas as cidades nós temos o regional que faz parte da CNBB, tem um pessoal muito bacana em Guarulhos, Diadema, e que pode estar ajudando. Aqui em Mogi nós temos o Conselho que está localizado aqui na ria Francisco Franco, na Casa dos Conselhos, ali na Secretaria de Assistência Social. Qualquer coisa pode procurar, e assim nós temos inúmeros militantes que se você procurar qualquer um deles poderá se engajar e ajudar. São trabalhos que a gente precisa formar lideranças, porque é muita solicitação e muitas vezes nós não damos conta, temos vários caminhos.
(Colaborou Geraldo Campos e Katia Brito)