Uma plateia majoritariamente negra ocupou o teatro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no centro do Rio de Janeiro, nesta sexta-feira (21), para a cerimônia de anúncio do concurso que vai selecionar arquitetos e urbanistas negros para criar uma espécie de museu a céu aberto na região da Pequena África, berço da presença africana no Brasil.  Uma apresentação do grupo cultural afoxé Filhos de Gandhy marcou o lançamento da concorrência pública, que é voltada exclusivamente para profissionais negros e escritórios que tenham negros à frente das equipes. As inscrições podem ser feitas até 18 de abril. A entrega das propostas de intervenções urbanísticas e arquitetônicas têm prazo até 15 de maio. Todos os candidatos passarão por banca de heteroidentificação – procedimento em que terceiros analisam as características físicas de uma pessoa para identificar a cor ou etnia. As propostas devem contribuir para a criação de um ambiente urbano integrado e funcional. Os arquitetos podem abranger ações culturais, estratégias de mobilidade urbana e até soluções de comunicação visual, mobiliário urbano e intervenções de pequeno porte. A ideia é que seja realçada a identidade local e consolidada a região como espaço de referência cultural e social. Os projetos devem manter foco na valorização do patrimônio, no estímulo à economia criativa e na ampliação do acesso à cultura. Um exemplo de intervenção é a integração de marcos históricos e percursos significativos. A ideia é fazer com que visitantes que passeiem pela região se percebam em um museu de território. O resultado será conhecido em junho e será decidido por um júri com cinco representantes: Prefeitura do Rio de Janeiro Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil Comitê Gestor do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo (reúne representantes da sociedade civil e de governos)  Os três projetos selecionados receberão prêmios que somam R$ 300 mil. 1º colocado: R$ 78 mil 2º colocado: R$ 39 mil 3º colocado: R$ 13 mil Patrimônio e valorização O Sítio Arqueológico do Cais do Valongo, uma das principais atrações da Pequena África, é reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O título faz com que o governo brasileiro tenha compromissos para restauração, conservação e promoção do espaço, e o BNDES, banco público que apoia iniciativas de desenvolvimento econômico e social, se dispôs a participar dos esforços do governo brasileiro. Data especial O lançamento do concurso acontece no Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, uma data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Aqui no Brasil, o 21 de março é também o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. A diretora de Pessoas do BNDES, Helena Tenório representou na cerimônia o presidente do banco, Aloizio Mercadante, que está hospitalizado para tratar uma pneumonia. “Não é apenas um dia de reflexão, mas de chamamento à ação para fortalecer políticas públicas, preservar a memória da resistência negra e promover um futuro mais igualitário. É isso que todos estamos fazendo hoje aqui”, disse. A diretora detalhou que, para preparar o concurso, foi feita escuta de mais de 150 horas na região. Mais de 600 moradores foram entrevistados. “Todo esse material precisa ser levado em consideração pelos arquitetos e urbanistas”, afirmou. Entre as percepções colhidas com os moradores, estão o sentimento de pertencimento e interesse de permanecer na região, o apoio ao turismo e a manutenção da tradição.    Espaço cultural Casa da Tia Ciata, na Pequena África. Fernando Frazão/Agência Brasil Pequena África A Pequena África já é considerada uma das regiões mais visitadas por turistas no Rio de Janeiro e concentra dezenas de quadras na região portuária, sendo um registro geográfico da chegada ao Brasil de africanos escravizados. Um passeio pelas ruas da Pequena África se transforma em uma aula sobre a influência negra na construção das identidades carioca e brasileira. Na região, além de sítios arqueológicos, como o Cais do Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos, ficam pontos marcantes do legado africano na cidade, como o Quilombo da Pedra do Sal, a Casa da Tia Ciata – matriarca do samba ─ e o Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (Muhcab). Um dos locais de maior importância é o Valongo. Historiadores apontam que cerca de 1 milhão de escravizados tenham desembarcado nas Américas pelo Cais do Valongo. Entre 1772 a 1830, o Cemitério dos Pretos Novos era local de sepultamento dos escravizados que morriam após a entrada dos navios negreiros na Baía de Guanabara ou imediatamente depois do desembarque, antes mesmo de serem vendidos. Hoje, existe no local o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), que pesquisa e preserva esse patrimônio material e imaterial africano.   ´Mapa do Projeto Viva Pequena África, elaborado pelo BNDES, mostra principais pontos da região. Foto: Arte/BNDES/Divulgação - Arte/BNDES/Divulgação Reparação e democracia A ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, enfatizou a relação entre reparação da herança africana e democracia. “Fazer reparação, reconhecer as violações de direitos humanos, trabalhar para que isso nunca mais se repita é fortalecer a nossa democracia”, disse ela. Além da preservação e promoção da Pequena África, Evaristo incentivou iniciativas como o ensino da história do continente africano. “Trabalhar pela inclusão da história da África nos currículos escolares é fortalecer a nossa democracia, combater o racismo e compreender que tem uma construção de África que é global, onde quer que a gente esteja”, disse a ministra, que saudou a presença de representantes dos governos dos países africanos Angola e Cabo Verde, que estavam na plateia. Retorno A ministra da Cultura, Margareth Menezes, classificou a iniciativa como uma “construção do retorno”. “É a construção do retorno, do merecimento, de reconhecer, de valorizar, de render glórias também à memória dessas pessoas que vieram antes, que sangraram, morreram aqui nesse país”, discursou. Ao falar de retorno, Margareth Menezes comentou que se emocionou durante uma missão oficial a Benin, país da África Ocidental, onde há um lugar chamado Porta do Não Retorno, lugar que servia de embarque para os escravizados que seguiam para as Américas. “Eu tive uma emoção tão forte”, lembrou. “Os que saíram daqui [África] sobreviveram também, eu sou fruto disso”, relatou o que sentiu no continente africano. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, afirmou que foi dado mais um passo de “tanta luta que retrata a memória, a força, a resistência do nosso povo”. Sem dar detalhes, ela adiantou que o governo lançará na próxima segunda-feira (24) a Agenda Nacional de Quilombos. “Quem sabe do quilombo é o quilombola, assim como quem sabe da favela é o favelado”. Ação afirmativa Estiveram também no lançamento os presidentes da Fundação Palmares, João Jorge Rodrigues dos Santos, e da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur), Marcelo Freixo, além de autoridades municipais e parlamentares. Para o babalawô Ivanir dos Santos, a iniciativa de escolher arquitetos e urbanistas negros não pode ser vista como medida de exclusão. “Não é exclusão, é valorização, com ação afirmativa, dessa capacidade profissional negra, que nem sempre é valorizada e aceita”, constatou. “Às vezes, quem ganha são grandes escritórios e, então, contratam um negro para poder fazer. Dessa vez, não, é dirigido. Então, isso é uma valorização, inclusive ancestral, nossa”. Ivanir, que também é conselheiro do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, ressaltou a importância de intervenções na Pequena África serem reproduzidas por profissionais afrodescendentes. “Este olhar vai ser importante. Não basta ser um arquiteto, tem que ser um arquiteto que tenha um olhar do que representou aquele espaço”, disse. “Por ali, entrou não só a mão de obra, mas entrou também a cultura, a espiritualidade, a economia, as relações sociais que até hoje são muito presentes na sociedade brasileira como resistência”, completou Ivanir dos Santos. Centro Cultural Rio-África Não é a primeira vez que uma iniciativa busca protagonismo de afrodescendentes em intervenções arquitetônicas e urbanísticas na Pequena África. Em julho de 2024, foi lançado um concurso promovido pela prefeitura do Rio de Janeiro e pelo departamento fluminense do Instituto dos Arquitetos do Brasil, para escolher um arquiteto negro responsável pelo futuro Centro Cultural Rio-África. O projeto vencedor é assinado pelo arquiteto Marcus Vinicius Damon Martins de Souza Rodrigues, do Estúdio Modulo de Arquitetura e Urbanismo, de São Paulo.   Centro Cultural Rio-África será construído na região Beth Santos/Divulgação Relacionadas Governo e BNDES destinam R$ 150 milhões para reflorestar assentamentos Rei de etnia angolana conhece, no Rio, a Pequena África Renda de pessoas negras equivale a 58% da de brancas, mostra estudo